Um club da Má-Lingua. Dostoyevsky Fyodor

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Um club da Má-Lingua - Dostoyevsky Fyodor

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com isso, mas levou a melhor a humanidade, pois, como diz Heine, mette o nariz em toda a parte. Paro, pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa, accudimos a ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de pé, – quero dizer, sobre os patins. – Uns mujiks que levavam uma carga de lenha para a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a dizer commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus! É o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á primeira vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e agora mesmo não estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem sequer já se lembra do nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em Petersburgo. N'esse tempo era eu um garoto. Lembro-me muito bem, mas elle, podia-se lá lembrar de mim? Apresento-me: fica encantado! Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em conclusão, desata a soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até chorou! Palavra puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse até Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações. Declarou-me que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do arcypreste Missail a quem tem em grande conta; que a Stepanida Matvéina – qual de nós, parentes do Principe, não terá ouvido falar de Stepanida Matveiévna? O anno passado, escorraçou-me de Dukhanovo com o pau da vassoira!.. Que a Stepanida Matveiévna recebera pois uma carta exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de alguem, o pae ou a filha, nem sei nem quero saber, – talvez que pae e filha ao mesmo tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado na fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera que conformar-se, desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a toda a pressa, para a capital.

      O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar chinós, a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em conclusão, a solidão acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr o trem e metteu a caminho do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu séquito, com medo do phantasma da Stepanida Matveiévna, atrevera-se a ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e tinha abalado na vespera, depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara da muda de madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á residencia do arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma barroca. Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais encantadora que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O principe está a pôr em ordem os arrebiques com o criado particular de quem porfiou em não prescindir. Mais depressa se deixaria morrer do que apresentar-se em casa de uma senhora sem a roupa toda da ordem… E aqui tem a historia toda… é uma historia deliciosa!

      – Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco com o principe. O senhor trata-o de tio.

      – Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para ahi um cento de gravêtos para sermos do mesmo ramo. Mas eu cá trato-o de tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso parentesco…

      – Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte. Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a uma mina!.. Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o que por ahi vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa Mordassov.

      – Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia Petrovna, a incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle para casa da Anna Nikolaievna!

      – Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.

      – O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe que está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu hospede. É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!

      – Ora vamos! Que está a dizer?

      – A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem mecanico. Não o vê ha seis annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem, esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo elle de engonços, a propria voz é artificial.

      – Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna com uns modos doridos. Não tem vergonha, o senhor, a falar assim de um veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria Alexandrovna, n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, lembre-se de que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas leviandades provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu Deus! tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que quer que é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os lados praticos, por assim dizer – da questão. Tenho vivido na sociedade, conheço melhor que o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é apenas um rapaz. Este vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da edade. O senhor, ha dias, affirmava que queria dar alforria aos seus servos, que cada qual deve ir com o seu século. Tudo isso, sem duvida, lá por que o leu para ahi algures no tal seu Shakespeare! Acredite, Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que tempos. Se elle resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra do viver moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe é sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao passo que o marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um palacio, fica sendo o marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada, – e a Natalia Dmitrievna pode pôr em cima de si meio cento de crinólines, que nunca passará de ser a Natalia Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, meu caro Pavel, é um representante da aristocracia, de lá veiu. Aqui onde me vê, ouso tambem ter-me na conta de não ser alheia á aristocracia. Pois bem! Ai do filho que chasqueia dos proprios antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui a nada, meu amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que lh'o digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao effeito!.. Mas… eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu querido Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma coisa, e com estes meus criados!.. E saiu apressada Maria Alexandrovna.

      – Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o principe não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É capaz de estoirar de raiva! – observou Nastassia Petrovna.

      Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe que é alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. E d'ahi, desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da porta, de ouvido á escuta.

      Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está commovidissimo, com a voz a tremer:

      – Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e com modo supplice.

      – Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada, erguendo sobre elle os esplendidos olhos.

      – Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a sempre em sonhos! Vim para saber a minha sorte… Mas por que franze as sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho resposta decisiva?

      Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.

      – E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como semelhante apprehensão me maguou em extremo,

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