A Estrutura Da Oração. Diego Maenza
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Passei a noite em branco, implorando ao céu, misericórdia, ouvindo o sussurro das minhas jaculatórias misturarem-se com o barulho da respiração do menino. O som do seu peito inflamado foi outro incentivo para a minha vigília. Ligarei para o médico assim que amanhecer. De toda a vez que senti vontade de contemplar a sua anatomia repousando sobre o meu leito, sujeitei-me à acusação feita pelo meu desejo de continuar a ser um filho de Deus. De seguir os passos do Profeta e não ceder logo às armadilhas do mal. “Quero servir-te Senhor e derrotar a tentação do demónio e dizer-lhe que nem só de carne vive o homem. Ele atenta-me, para que me afaste de Ti, oh Pai amado, mas eu sou servo exclusivo das Tuas ordens”.
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Tomás vê sombras onde elas não existem. Inventa-as. Por vezes, durante as manhãs ensolaradas do verão, põe-se a andar atrás das lagartixas, animais que se infiltram nas paredes de pedra do jardim, por entre as fendas de cimento do pátio das traseiras, entre as gretas da beira das janelas, aquela bicharada que aparece para apanhar um pouco de sol. Tomás repreende-as com uma voz anciã, com grunhidos grossos, carregados de lentidão e escassos em impulsos. Embora, noutras alturas, recorra ao ladro com uma energia inusual, fazendo predominar a sua autoridade de cão mais velho, a sua atitude vigilante de Cérbero a tempo parcial, ao acesso dos seus antecessores mais frágeis, certificando-se de que ninguém viola o seu território. Agora está a brincar com uma bravura repentina que retirou sabe-se lá de onde e que adverte o bicho, que deve ter procurado, provavelmente, refúgio no galho de alguma velha amendoeira onde o cão dá saltos de emboscada enquanto ladra. Mas no geral, é a imaginação cansada que esboça, na sua fantasia daltónica, agravada pelo seu olfato já gasto, os demónios que sempre o atormentam. Digo para mim próprio, enquanto o observo, que afinal, não somos assim tão diferentes. Simples animais instintivos cedendo aos caprichos da nossa natureza. Isto se não fosse a nossa alma. “Obrigado, meu Deus, por nos teres dado uma alma”.
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Celebrei a eucaristia sem a presença do miúdo e, apesar da mão caridosa que segurou o incenso não se ter ausentado, o resultado da experiência não foi semelhante à que sinto na presença dele. Não o ver durante um par de horas foi um tormento ainda maior do que tê-lo deitado a centímetros da minha pele.
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O veredicto do doutor foi definitivo. “É uma forte gripe que está a afetar as defesas do rapaz”, diz-me numa voz grossa, esboçando um sorriso rigoroso, “mas que com alguns dias de repouso e uma forte dose de analgésicos, estará novamente com saúde”. Caminhámos os dois até à porta, cujas dobradiças emitem um ruído carregado de ferrugem que nos faz estremecer devido à sua agressão auditiva. Após isso, o doutor volta-se com solenidade, baixa o olhar, submisso, e pede a bênção. Esboço uma cruz no ar, bem ao nível do seu rosto e logo se despede com uma vénia. O rapaz volta a adormecer, inspirando e expirando com dificuldade. Apalpo a sua testa para explorar a doença, mas só consigo sentir o meu corpo a tremer e uma transpiração excessiva a fluir das minhas mãos.
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Fiz serviço de escritório e encurtei as reuniões com os paroquianos. E já livre das minhas responsabilidades, caminhei pelo passeio do cais, na margem do rio, que liga esta pequena cidade à cidade vizinha, atingida pela brisa que se agita com um profundo assobio e como sempre, que me despenteia. O fim do verão arrasta belos murmúrios. As andorinhas propiciam o conhecido êxodo anual até ao oeste numa peregrinação com demasiada lamentação, uma vez que as aves, na sua anarquia escatológica, durante esta época recorrem justamente à zona do parque central, ornamentando automóveis, bancadas, praças e peões com uma festa de excrementos sem igual.
Precisamente agora em que caminho perto do parque central, percebe-se a trinada coral destes pássaros minúsculos agarrados aos cabos elétricos, num canto coletivo retardado por breves intervalos devido ao ruído dos transportes que circulam sem cessar pela avenida. Continuo a minha marcha pela rua mais discreta que encontro nesta vila aspirante a cidade, um beco sem passagem para veículos que se converteu no meu itinerário obrigatório de toda a vez que venho às compras. Aqui tudo é serenidade, sem estrondos de motores e buzinas irritantes. E de repente, ressoa o barulho do lugar do bilhar, inaugurado nestes últimos dias. Ouvem-se insultos revestidos de uma tonalidade cada vez mais obscena que fluem da boca de um jovem que não hesita perante a robustez do seu inimigo, o qual se encontra orgulhoso das suas tatuagens obscenas que incitam a classificá-lo como um preso de alguma prisão remota. Opto por retirar-me rapidamente e, girando sobre os meus calcanhares, de costas voltadas para as hostilidades, consigo ouvir os golpes secos que agitam os corpos. Vou para a avenida principal. Caminho, tentando esquecer o miúdo. Mas nem sequer o barulho dos carros, nem os gritos dos condutores furiosos com a ponta do pé no pedal, ou a chuva de críticas que recai sobre mim como se fosse loiça, ou até mesmo o recente conflito na rua, são capazes de me fazer deixar de pensar nele e deter o meu suplício. Tento distrair-me ao pensar em uma conclusão pacífica para aquela rivalidade no beco. Chego ao meu destino, mas sem ter tirado dos ombros o peso que carrego.
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O mercado é um incêndio de sons. Os gritos que tomam conta do lugar, carregado de vendedores ansiosos por vender as suas frutas, legumes, grãos e outros alimentos no geral, dão um toque de euforia, próprio dos lugares cheios de pessoas. Como sempre, aproximo-me da zona do peixe e peço o mesmo de todas as segundas-feiras.
“Aqui tem, Padre”, diz-me Leandro, o vendedor que me conhece há anos e embrulha, sem contemplar, os peixes, ainda epiléticos, em folhas de jornais antigos. Ao sair do mercado oiço as sirenes da polícia a queixarem-se num alarido, encorajando e perseguindo os curiosos que se juntam na cena do crime para recriarem a sua curiosidade e julgarem com os olhos. Ao passar perto da rua da batalha, posso ver como o rufia corpulento é algemado e colocado no carro-patrulha, mas não sem oferecer resistência. Não há sinais do jovem destemido. Afasto-me, imaginando uma vez mais uma conclusão rebuscada à história da briga no bar. Recai sobre mim a imagem do menino, a lembrança da sua voz que palpita nos meus tímpanos como se fosse um coro de anjos. Entendo que é uma blasfémia maior do que os palavrões do homem musculado e cheio de tatuagens. Faço algumas orações enquanto vou para casa.
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A senhora Salomé desfila, balançando a vassoura à minha frente sem qualquer preocupação, sob a proteção de Tomás, como sempre. Adaptou-se à minha presença no sofá, à minha prostração habitual que me une a uma mistura de sensações que ela jamais suspeitaria. Por alguns momentos entendo que sou eu quem está acostumado à sombra da sua anatomia a deslocar-se pela sala. Levanto-me entediado e dirijo-me aos meus aposentos.
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A música penetra em minha sensibilidade e imprime uma pegada com a sua alquimia melodiosa. Fecho os olhos e sou transportado para outro mundo, mais prazeroso, um lugar marcado por alegrias intermináveis, um paraíso feito de todas as flores: túlipas, dálias, ageratos, crisântemos, orquídeas, lírios – onde perder-se torna-se uma bênção. A única forma de evitar os pensamentos inalcançáveis e constantes.
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Uma ânsia agita o corpo do jovem. A força, que comprime e que o diafragma libera violentamente, emana dos pulmões e irrompe com dureza, deslizando grosseiramente pela língua, atravessando as cordas vocais que transformam o impulso num som rouco e turvo. A tosse materializa-se na saliva que atravessa a garganta e termina numa viagem desde a janela até ao jardim. O menino tosse prolongadamente, com pausas que mal lhe dão descanso ao ardor das amígdalas. Ao mesmo tempo, o impetuoso latido de Tomás inunda toda a casa, apesar de estar no pátio, e é possível notar que a sua vigia não foi inútil, já que deve ter detetado provavelmente algum bicho