O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton
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— Ainda ninguém a leu — redarguiu Stephan, em voz baixa. — Nem uma palavra.
Žofie olhou para o manuscrito que lhe ofereceu novamente. Queria realmente que o lesse naquele momento?
O porteiro — Rolf, conforme Stephan lhe chamou —, interveio:
— Espero que a sua convidada tenha tido um Natal feliz, jovem Stephan.
Stephan, ignorando o comentário, disse a Žofie:
— Estava há uma eternidade à espera que chegasses a casa.
— Sim, Stephan, a minha avó está bem e passei um Natal bonito na Checoslováquia, obrigada por perguntares — troçou Žofie-Helene e as suas palavras foram recompensadas com um sorriso de aprovação por parte de Rolf, enquanto este lhe guardava o casaco e o cachecol novo.
Leu depressa, só a primeira página.
— Tem um começo maravilhoso, Stephan — elogiou.
— Achas?
— Vou lê-la toda esta noite, prometo-te, mas, se insistires que conheça a tua família, não posso ir carregada com o manuscrito.
Stephan espreitou para a sala de música. Depois, agarrou no manuscrito e subiu as escadas a correr. Acariciou cada uma das estátuas da escada e continuou a subir mais para além do segundo andar, onde as portas da biblioteca estavam abertas e, no seu interior, se viam mais livros do que Žofie teria achado que pudessem ter.
Uma mulher elegante de peito plano estava a dizer, na sala: «… O Hitler está a queimar livros… Os mais interessantes, devo acrescentar.» A mulher parecia-se muito com Stephan e também com a mulher do retrato com as faces vermelhas, embora usasse o cabelo com um risco ao meio e caísse para os lados com caracóis largos. «Esse homenzinho vil diz que o Picasso e o Van Gogh são uns incompetentes e uns mentirosos.» Tocou num colar de pérolas que tinha ao pescoço com uma volta, tal como o da mãe de Žofie, mas este dava uma segunda volta que chegava até à sua cintura, com esferas tão perfeitas que, se alguma vez partisse o fio, sairiam a rodar, sem dúvida. «Diz que “a missão da arte não é desfrutar da imundície pela imundície”, como se tivesse ideia de qual é a missão da arte. E depois eu é que sou histérica?»
— Histérica não — respondeu um homem. — Essa palavra é tua, Lisl.
Lisl. Então, aquela era a tia de Stephan. Adorava a tia Lisl e também o marido, o tio Michael.
— De facto, a palavra é do Freud, querido — corrigiu Lisl, alegremente.
— São os modernistas que chateiam o Hitler — comentou Michael, o tio de Stephan. — O Kokoschka…
— Que, é claro, obteve o lugar na Academia das Artes que o Hitler considera que devia ter sido para ele — interrompeu Lisl. — Os desenhos do Hitler obtiveram uma qualificação tão baixa que nem sequer pôde apresentar-se para o exame formal, conforme lhes disse. Teve de dormir num refúgio para homens, comer numa sala de jantar comunitária e vender os seus quadros às lojas que precisavam de alguma coisa para encher as molduras de fotografias vazias.
Enquanto o grupo se ria com o seu relato, uma porta abriu-se no outro extremo do vestíbulo. Um elevador! Um menino levantou-se de uma cadeira situada no seu interior; uma cadeira de rodas linda (que obviamente não era dele) com apoio de braços acolchoados e o assento e as costas de vime, com coroas circulares de proporções perfeitas nos braços de latão e nas rodas. O menino entrou no vestíbulo, arrastando um coelho de peluche pelo chão.
— Olá! Deves ser o Walter — replicou Žofie. — E quem é o teu amigo, o coelho?
— Este é o Peter — respondeu o irmão de Stephan.
Peter Rabbit. Žofie desejou não ter gastado a sua prenda em dinheiro. Podia ter comprado um Peter com um casaco azul como aquele para a irmã, Jojo.
— O meu pai é o que está junto do meu piano — indicou o menino.
— O teu piano? — perguntou Žofie. — Sabes tocar?
— Não muito bem — respondeu o rapaz.
— Mas nesse piano?
O menino olhou para o piano.
— Sim, é claro.
Stephan voltou a descer as escadas, com as mãos vazias e, então, Žofie reparou no bolo de aniversário que havia na sala, com velas acesas ao amanhecer que se consumiam ao longo do dia, a dois centímetros por hora, como era a tradição na Áustria. Junto do bolo, havia uma bandeja com um sortido de bombons fabuloso, alguns de chocolate de leite, outros de chocolate preto e todos de formas diversas, mas cada um decorado com o nome de Stephan.
— Stephan, é o teu aniversário? — Dezasseis velas pelo seu aniversário e uma para lhe trazer sorte. — Porque não me disseste?
Stephan acariciou o cabelo de Walter e, nesse momento, acabou a canção de violoncelo.
— Eu! — exclamou Walter. — Quero fazê-lo! — E foi a correr para o pai, que aproximou um banco do gramofone.
— E, agora, o Zweig fugiu para Inglaterra e o Strauss compõe para o führer. — Estava a dizer a tia Lisl, palavras que chamaram a atenção de Stephan. Žofie-Helene não acreditava nos heróis, mas permitiu que Stephan a arrastasse para a sala para poder ouvir falar dos seus.
— Deves ser a Žofie-Helene! — exclamou a tia Lisl. — Stephan, não me tinhas dito que a tua amiga era tão bonita. — Tirou alguns ganchos do coque de Žofie e deixou-lhe o cabelo solto. — Sim, assim está melhor. Se tivesse um cabelo como o teu, também não o cortaria, independentemente da moda. Lamento que a mãe do Stephan não possa conhecer-te, mas prometi contar-lhe tudo sobre ti, portanto, tens de me contar tudo.
— É um prazer conhecê-la, frau Wirth — replicou Žofie. — Mas continue a conversa sobre o herr Zweig ou o Stephan nunca me perdoará.
Lisl Wirth deixou escapar uma gargalhada calorosa, com o queixo ligeiramente orientado para o teto muito alto.
— Atenção, todos, esta é a filha da Käthe Perger. A editora do Vienna Independent. — Virou-se para Žofie e acrescentou: — Žofie-Helene, esta é a Berta Zuckerkandl, jornalista, tal como a tua mãe. — Dirigiu-se aos outros. — A mãe que, devo dizer, tem mais coragem do que o Zweig ou o Strauss.
— A sério, Lisl — objetou o marido —, falas como se o Hitler estivesse na nossa fronteira. Falas como se o Zweig vivesse exilado, quando, na verdade, está na cidade agora.
— O Stefan Zweig está cá? — perguntou Stephan.
— Estava no Café Central há menos de trinta