Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal HARPERCOLLINS PORTUGAL

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insuficientemente esta parte do parque. A Whisper e eu somos apenas duas sombras escuras para ele, mas ele aparece iluminado por completo. Tem o casaco aberto e, no colarinho, tem uma franja de pele com manchas que vai desde o queixo até à clavícula. Parece que tentou fazer crescer pele nova nessa zona, mas parou a meio caminho, deixando uma marca inacabada. É um homem idoso, mas custa-me a calcular a idade. Seja qual for, usou os seus anos para aprender a vestir-se bem. Casaco elegante. Bons sapatos. Não condiz. Um homem que cuida da sua aparência e passa as noites sentado num parque a seguir mulheres enquanto passeiam os seus cães.

      Esperamos num silêncio incómodo, os três. A Whisper boceja e passa a língua pelos caninos afiados para acelerar as coisas. O homem interpreta-o como a ameaça que, sem dúvida, é.

      — A tua irmã disse-me onde podia encontrar-te — admite, finalmente.

      Se acha que isso vai tranquilizar-me, engana-se muito. Lorelei não fala comigo desde o ano passado, desde que roubei o carro do marido dela, o tirei da estrada e o despenhei por uma ravina.

      Mas decido fazer o que ele quer.

      — O que queres?

      — Não sei — responde, com um sorriso triste. — Suponho que recordar os velhos tempos nos meus últimos anos.

      — E o que é que isso tem a ver comigo?

      — Conheci o teu pai. — Ainda bem que tem uma voz suave, porque, pronunciada num decibel mais alto, aquela frase poderia ter feito com que caísse de rabo no chão, se não estivesse já sentada. — Posso sentar-me? — Aponta para o banco. Há algo estranho no seu tom de voz. A sua dicção está demasiado calma para alguém a enfrentar um animal imprevisível. Questiono-me se a cicatriz do pescoço terá alguma coisa a ver com a sua atitude despreocupada. Se será um desses homens tão habituados ao perigo que já não têm medo.

      — Não. Conhecias o meu pai de onde?

      Faz uma pausa e observa as presas da Whisper.

      — Do Líbano. Sabes que servimos com os marines lá, não é?

      Ignoro-o porque não sabia, mas, certamente, não lhe diz respeito.

      — Isso não explica porque me segues.

      Passa uma mão pela cara e para as pontas dos dedos na cicatriz. Observa que olho para lá.

      — Do Líbano. Uma explosão. — Pondera cuidadosamente as palavras seguintes antes de falar. — Disse que viria ver-te se acontecesse alguma coisa.

      Rio-me.

      — Chegas várias décadas atrasado.

      — Não sou um bom amigo. Olha, agora, estou reformado e tinha de viajar para o Canadá. Pensei em passar por cá para te ver. Já vim ver a tua irmã e a ti quando morreu, há muitos anos, mas, então, estavam com a vossa tia e tudo parecia em ordem. Há alguns dias, consegui localizar a tua irmã. Não parecia muito contente contigo…

      — Não tem de estar. — Lorelei e eu não nos tínhamos despedido de forma amistosa. No entanto, mantivera o seu apelido de solteira quando se casara e tinha muita presença online. Não seria difícil de encontrar se alguém se incomodasse em procurá-la.

      — Disse-lhe que éramos velhos amigos. Demorei a convencê-la, mas disse-me que conseguiria encontrar-te através do Sebastian Crow. E aqui estou.

      — Mas porquê?

      Fica nervoso, tira um cigarro do casaco e acende-o. Mantém o olhar fixo na chama do isqueiro.

      — Alguma vez fizeste uma promessa que não cumpriste? Fiz muitas coisas más na vida, mas o que aconteceu ao teu pai, no fim… Nunca pensei que o que lhe aconteceu estava bem. Sabia que tinha sofrido depois do problema no Líbano, mas meu Deus. Que pena!

      Olha para a minha mão e vê que tenho os dedos agarrados à trela da Whisper com tanta força que as unhas se cravam na palma, deixando marcas em forma de meia-lua.

      — Não sei o que estou a fazer aqui — admite. Ainda não levou o cigarro à boca e não parece ter intenção de o fumar.

      No ano passado, quase morri afogada. Não me lembro muito daquilo, só que devo ter desmaiado em algum momento. Qualquer mergulhador sabe que, na última etapa da narcose de nitrogénio, a hipoxia chega ao cérebro. Pode causar uma incapacidade neurológica. Com frequência, o julgamento e o raciocínio são afetados, pelo menos, naquele momento. Mas também pode ser agradável, a falta de oxigénio. Quente. Até segura.

      Pode fazer com que alucinemos.

      Interrogo-me se estarei a experimentar um efeito colateral a longo prazo causado por ter estado prestes a afogar-me. Porque antes percebia quando as pessoas mentiam, quase com certeza. Contudo, agora, não tenho a certeza. Depois dos acontecimentos do ano passado, quando a minha filha desapareceu, a rapariga que tinha dado para adoção sem pensar duas vezes, vejo as pessoas de um modo diferente. Talvez seja o meu instinto maternal preguiçoso, que me tolda os sentidos. Ou talvez tenha perdido a minha magia. Porque, ao dizer-me que não sabe o que faz aqui, acredito. Acho que fazemos coisas que não têm sentido. Nem sequer para nós próprios.

      Também é possível que esteja a ser vítima das minhas próprias alucinações.

      Estou tão confusa que não digo nada em resposta. O veterano de guerra parece tão inquieto como eu. Fico a olhar fixamente para ele até se afastar, para o oceano, e desaparecer na noite densa. Então, esfrego as mãos para recuperar o toque. Tenho os pensamentos emaranhados, mas um deles solta-se do matagal.

      Não é apenas a surpresa de alguém vir procurar-me depois de tantos anos. Nem sequer é o facto de sentir a necessidade de me seguir na escuridão para se certificar de que estou bem. É mais do que isso e tem a ver com as coisas que não sabia sobre o meu pai. Que houve problemas no Líbano. Com o meu pai.

      O meu pai teve problemas no Líbano e, alguns anos depois, rebentou os miolos.

      3

      Ao longe, no espaço sideral, uma estrela chamada KIC 8462852 brilha por alguma razão desconhecida, enquanto na Terra, um ex-polícia, ex-agente de segurança, ex-marido e ex-jogador de bowling amador faz um ar de nojo ao pegar num copo de sumo de espinafre, com a esperança de que os seus órgãos internos prestem atenção ao esforço que está a fazer por eles.

      Esta estrela em particular confundiu cientistas de todo o mundo com o seu brilho constante, enquanto Jon Brazuca se confunde a si próprio com a sua nova determinação de ser mais amável com o seu corpo. Herdou a baixa autoestima da mãe fraca e do pai de queixo afundado, que se desculpou durante toda a sua vida e até nos seus anos de reforma.

      Mas Brazuca superou-o. Esse círculo humilhante de «lamento» e «peço desculpa» acabaria com ele.

      Virou a página e misturou-a com um smoothie.

      O sol do fim da tarde já está muito perto do horizonte e ele está cheio de clorofila e alegria. Brazuca sempre esteve mais desperto de noite, mais vivo e, agora, recorreu à astronomia para preencher os vazios. Não é um homem de ciência, mas desejaria ser. Uma vez, a mãe levou-o a Espanha quando era criança, às falésias de Famara e, juntos, observaram as estrelas refletidas nas poças de água da praia.

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