Uma bala com o meu nome. Susana Rodríguez Lezaun
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— Achas que sou um preguiçoso? Um ignorante que ganha uns trocos a trabalhar como empregado de mesa e arredonda a tarefa a seduzir senhoras ricas? Estás muito enganada. Não quero nada teu. Nada material, pelo menos.
Pousou a chávena na mesa e levantou-se. Eu não sabia o que dizer. Interpretara mal as minhas palavras, não era isso que queria dizer.
— Não me entendeste — balbuciei. — Por favor, senta-te e vamos falar. Não podes ir assim.
Noah olhou para mim por uns segundos e, finalmente, acedeu. Voltou a sentar-se e fixou os seus olhos azuis em mim.
— Bom — comecei a dizer —, sinto consciência de quem sou. De facto, sinto-me consciente do que gostaria. E não me refiro ao meu cargo no museu ou ao facto de ter uma vida mais ou menos desafogada. Refiro-me a mim. Tenho quarenta anos, estou sozinha por decisão própria e não entendo os motivos que um homem como tu pode ter para querer estar comigo. E não falo do teu trabalho, do teu dinheiro ou da tua formação. De facto, não sei nada sobre ti. Falo da tua idade e da minha, do meu aspeto e do teu. Quero divertir-me. Há tantos espaços em branco na minha vida que, às vezes, eu própria me assusto. Sou uma pessoa solitária que fala com as plantas dos vasos, que murmura para as pinturas com que trabalha e a quem nunca aconteceu algo extraordinário. Tu és extraordinário e é por isso que estou à defesa, porque me preparo para quando desapareceres. O que aconteceu ontem foi fantástico. Viverei com essa lembrança durante muito tempo. Mas não tem sentido fingir que pode repetir-se, não achas? Sê sincero também.
— Sabes? Acho que não pode haver nada pior do que perceber, no teu leito de morte, todas as coisas que não fizeste e que a tua vida foi uma merda. Devia haver um inferno para essas pessoas, que passariam a eternidade a lamentar as oportunidades perdidas. Eu não quero ser uma delas. Não tenciono deixar o meu rasto na história, prefiro que a vida me marque. Por isso, quando alguma coisa me chama a atenção, quando descubro alguma coisa que acho que pode enriquecer a minha vida, vou atrás dela. Ontem, vi-te. Vi uma mulher muito atraente, com muita classe, que estava sozinha e aborrecida e quis conhecê-la. Gostei do que descobri e ponto final. E aqui estou, a deixar que a oportunidade me leve para onde quiser. Tenho vinte e seis anos. Tu, quarenta. Não vejo onde está o problema. Mas se preferires que me vá embora, só tens de mo dizer.
Observei-o atentamente.
— Acaba o pequeno-almoço e toma um duche — consegui dizer. — Na verdade, cheiras realmente mal.
Noah foi-se embora três horas mais tarde, depois de mais sexo, um almoço esplêndido e o compromisso da minha parte de que jantaria com ele. Não voltámos a separar-nos até à tarde de domingo.
As semanas seguintes decorreram numa nuvem plácida. Trabalhava com um sorriso nos lábios e precipitava-me pela escada assim que o meu dia de trabalho acabava para ir ter com Noah, que me esperava no estacionamento do museu junto da sua mota. Passeámos pela praia, comemos, bebemos e fizemos amor como se aqueles fossem os nossos últimos dias na Terra. Eu continuava a ter as minhas dúvidas sobre a conveniência dessa relação, mas era mais fácil deixar-me levar pela maré de sensações prazenteiras. A outra opção era regressar à solidão, ao silêncio e ao ostracismo. Queria viver. Por uma vez, queria desfrutar daquilo que os outros pareciam ter por direito próprio e que me tinham negado desde que conseguia recordar. Ou que eu própria negara, não sei.
Comprei roupa, estreei sapatos de salto e maquilhava-me diariamente. Praticava à frente do espelho. Fazia poses e olhares, ria-me sozinha como uma parva, à procura da forma de sorrir sem marcar os pés de galinha à volta dos olhos. Informei-me na Internet sobre os grupos de música que estavam na moda e até vi alguns filmes de pornografia, em busca de alguma coisa com que pudesse surpreendê-lo na cama. Tomei nota mental de várias posições e tentei pô-las em prática, mas a realidade e as minhas limitações físicas impuseram-se e acabei por me conformar com o que já sabia fazer, que também não era assim tão mau.
A desinibição natural de Noah, que passeava nu pelo apartamento sem nenhum pudor, olhava para mim com descaramento e tocava em lugares em que nenhum ser humano tocara antes, acabou por me contagiar e atrevi-me a experimentar, a pedir e a dar. Deixei-me levar pelo instinto e desfrutei como nunca antes, ainda que, no fim, cobrisse o corpo com o lençol até ao pescoço.
Fomos algumas vezes ao apartamento dele, um apartamento com um quarto minúsculo, uma cozinha sem porta e uma sala estreita, mas a maioria dos encontros acabava em minha casa, muito mais ampla, prática, discreta e acolhedora.
Contou-me que se licenciou em Jornalismo, mas que ganhava a vida como empregado de mesa em festas privadas enquanto continuava à procura de um emprego de acordo com as suas aspirações. Confessou que adoraria ser um grande repórter, mas que, enquanto isso não acontecia, trabalhara como instrutor num ginásio, assistente de dentista e carregador no porto.
Gostava dos filmes de gangsters e de rock, lia romances policiais, livros de história e ensaios sobre economia e globalização, para além das centenas de livros de banda desenhada que se empilhavam em equilíbrio precário no interior do armário do corredor do seu apartamento.
Os pais e o único irmão viviam em algum lugar da Pensilvânia a que não tencionava regressar, exceto no dia de Ação de Graças e no Natal. Pessoas normais numa vila normal, demasiado aborrecida para um jovem com umas inquietações mínimas. Saíra de casa assim que acabara a secundária e conseguira uma bolsa para estudar na Universidade de Massachusetts, que não era a sua primeira opção, mas fora a única que o aceitara com as suas qualificações.
Relatou-me as suas viagens ao longo dos Estados Unidos, algumas vezes de mota e outras de comboio, autocarro ou à boleia. Vivera mais intensamente nos últimos cinco anos do que eu em toda a minha vida. As minhas viagens, que não tinham sido poucas e que me tinham levado a percorrer boa parte da Europa, foram sempre tão académicas e profissionais que mal me tinham proporcionado histórias para contar. Recordava a recompensa do estudo, o espanto das obras que, até então, só conhecera nos livros, a admiração que suscitavam em mim as palavras daqueles mestres tão eruditos, tão extraordinários… Mas mais nada. Nada de diversão, nada de turismo, nada de seduções no bar do hotel. Nada de nada.
Pelo contrário, falei-lhe do meu trabalho, das peças que passavam pela minha mesa, das dificuldades que enfrentava, das dúvidas que me assaltavam às vezes, quando hesitava sobre a melhor técnica para aplicar em cada caso… Não era tão emocionante como as aventuras dele, mas era a minha vida.
— Adoraria ver onde trabalhas — comentou, uma noite, enquanto me acariciava as costas nuas com a ponta dos dedos —, conhecer o espaço em que te mexes, em que és a rainha.
— O meu trabalho não é nada do outro mundo — indiquei. — Passo horas inteiras inclinada por cima de uma peça, quase sem me mexer, a remexer entre tintas e pigmentos até encontrar o tom adequado. Ou pior, no meu escritório, a organizar a distribuição de tarefas, os dias feriados, a preencher pedidos de material, a ouvir queixas… É muito aborrecido.
— Não acredito. A julgar pela forma como os teus olhos brilham quando me contas o que fazes, tem de ser apaixonante.
— É para mim, certamente, mas para quem não estiver na minha pele, ver uma pessoa sozinha e em silêncio a mexer milimetricamente uma ferramenta tem de ser um verdadeiro aborrecimento.
— Gostaria de conhecer os teus domínios, a sério.
— É complicado, é proibida a entrada de qualquer pessoa que não trabalhe no museu — expliquei. A sua careta desiludida comoveu-me e suavizou-me o coração ao ponto de ceder em menos de um minuto. —