Como e porque sou romancista. José Martiniano de Alencar

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      Como e porque sou romancista

      I

      Meu amigo,

      Na conversa que tivemos, ha dias, exprimiu V. o desejo de colher acerca da minha peregrinação litteraria, alguns pormenores dessa parte intima de nossa existencia, que geralmente fica á sombra, no regaço da familia, ou na reserva da amizade.

      Sabendo de seus constantes esforços para enriquecer o illustrado author do Diccionario Bibliographico, de copiosas noticias que elle difficilmente obteria á respeito de escriptores brazileiros, sem a valiosa coadjuvação de tão erudito glossologo; pensei que me não devia eximir de satisfazer seu desejo e trazer a minha pequena quota para a amortização desta divida de nossa ainda infante litteratura.

      Como bem reflexionou V., ha na existencia dos escriptores factos communs, do viver quotidiano, que todavia exercem uma influencia notavel em seu futuro, e imprimem em suas obras o cunho individual.

      Estes factos jornaleiros, que á propria pessoa muitas vezes passam despercebidos sob a monotonia do presente, formam na biographia do escriptor a urdidura da tela, que o mundo sómente vê pela face do matiz e dos recamos.

      Já me lembrei de escrever para meus filhos essa authobiographia litteraria, onde se acharia a historia das creaturinhas enfesadas, de que, por mal de meus peccados, tenho povoado as estantes do Sr. Garnier.

      Seria esse o livro dos meus livros. Si n'alguma hora de pachorra, me dispuzesse á refazer a cançada jornada dos quarenta e quatro annos, já completos; os curiosos de anedoctas litterarias saberiam, além de muitas outras cousas minimas, como a inspiração do Guarany, por mim escripto aos 27 annos, cahio na imaginação da criança de nove, ao atravessar as matas e sertões do norte em jornada do Ceará á Bahia.

      Emquanto não vem ao lume do papel, que para o da imprensa ainda é cedo, essa obra futura; quero em sua intenção fazer o rascunho de um capitulo.

      Será d'aquelle, onde se referem as circumstancias, á que attribuo a predilecção de meu espirito pela fórma litteraria do romance.

      II

      No anno de 1840 frequentava eu o Collegio de Instrucção Elementar, estabelecido á rua do Lavradio n. 17, e dirigido pelo Sr. Januario Matheus Ferreira, á cuja memoria eu tributo a maior veneração.

      Depois daquelle que é para nós meninos a encarnação de Deus e o nosso humano Creador, foi esse o primeiro homem que me incutiu respeito, em quem acatei o symbolo da authoridade.

      Quando me recolho da labutação diaria com o espirito mais desprendido das preocupações do presente, e succede-me ao passar pela rua do Lavradio pôr os olhos na taboleta do collegio que ainda lá está na sacada do n. 17, mas com diversa designação; transporto-me insensivelmente áquelle tempo, em que de fraque e boné, com os livros sobraçados, eu esperava alli na calçada fronteira o toque da sineta que annunciava a abertura das aulas.

      Toda minha vida collegial se desenha no espirito com tão vivas cores, que parecem frescas de hontem, e todavia mais de trinta annos já lhes pairaram sobre. Vejo o enxame dos meninos, alvoriçando na loja, que servia de saguão; assisto aos manejos da cabala para a proxima eleição do monitor geral; oiço o tropel do bando que sobe as escadas, e se dispersa no vasto salão onde cada um busca o seu banco numerado.

      Mas o que sobretudo assoma nessa tela é o vulto grave de Januario Matheus Ferreira, como eu o via passeando deante da classe, com um livro na mão e a cabeça reclinada pelo habito da reflexão.

      Usava elle de sapatos rinchadores; nenhum dos alumnos do seu collegio ouvia de longe aquelle som particular, na volta de um corredor, que não sentisse um involuntario sobresalto.

      Januario era talvez rispido e severo em demazia; porém, nenhum professor o excedeu no zelo e enthusiasmo com que desempenhava o seu arduo ministerio. Identificava-se com o discipulo; transmittia-lhe suas emoções e tinha o dom de crear no coração infantil os mais nobres estimulos, educando o espirito com a emulação escholastica para os grandes certamens da intelligencia.

      Os modestos triumphos, que todos nós obtemos na eschola, e que não vêm ainda travados de fel como as mentidas ovações do mundo; essas primicias litterarias tão puras, devo-as á elle, á meu respeitavel mestre que talvez deixou em meu animo o germen dessa fertil ambição de correr apoz uma luz que nos foge; illusão que felizmente já dissipou-se.

      Dividia-se o director por todas as classes embora tivesse cada uma seu professor especial; desse modo andava sempre ao corrente do aproveitamento de seus alumnos, e trazia os mestres como os discipulos em constante inspecção. Quando, nesse revesamento de licções, que elle de proposito salteava, acontecia achar atrazada alguma classe, demorava-se com ella dias e semanas, até que obtinha adiantal-a e só então a restituia ao respectivo professor.

      Meado, o anno, porém, o melhor dos cuidados do director voltava-se para as ultimas classes, que elle se esmerava em preparar para os exames. Eram estes dias de gala e de honra para o collegio, visitado por quanto havia na Côrte de illustre em politica e lettras.

      Pertencia eu á sexta classe, e havia conquistado a frente da mesma, não por superioridade intellectual, sim por mais assidua applicação e maior desejo de aprender.

      Januario exhultava à cada uma de minhas victorias, como se fôra elle proprio que estivesse no banco dos alumnos á disputar-lhes o logar, em vez de achar-se como professor dirigindo os seus discipulos.

      Rara vez sentava-se o director; o mais do tempo levava á andar de um á outro lado da sala em passo moderado. Parecia inteiramente distrahido da classe, para a qual nem volvia os olhos; e todavia nada lhe escapava. O apparente descuido punha em prova a attenção incessante que elle exigia dos alumnos, e da qual sobretudo confiava a educação da intelligencia.

      Uma tarde ao findar a aula, houve pelo meio da classe um erro. – Adeante, disse Januario, sem altear a voz, nem tirar os olhos do livro. Não recebendo resposta ao cabo de meio minuto, repetiu a palavra, e assim de seguida mais seis vezes.

      Calculando pelo numero dos alumnos, estava na mente de que só á setima vez, depois de chegar ao fim da classe é que me tocava responder como o primeiro na ordem da collocação.

      Mas um menino dos ultimos lugares tinha sahido poucos momentos antes com licença, e escapava-me esta circumstancia. Assim, quando sorrindo eu esperava a palavra do professor para dar o quináo, e ao ouvir o setimo adeante, perfilei-me no impulso de responder; um olhar de Januario gelou-me a voz nos labios.

      Comprehendi; tanto mais quanto o menino ausente voltava á tomar seu lugar. Não me animei á reclamar; porém creio que em minha phisionomia se estampou com a sinceridade e a energia da infancia, o confrangimento de minha alma.

      Meu immediato e emulo, que me foi depois amigo e collega de anno em S. Paulo, era o Aguiarsinho (Dr. Antonio Nunes de Aguiar), filho do distincto general do mesmo nome, bella intelligencia e nobre coração ceifados em flor, quando o mundo lhe abria de par em par as suas portas de ouro e porphiro.

      Ancioso aguardava elle a occasião de se desforrar da partida que lhe eu havia ganho, depois de uma luta porfiada – Todavia não lhe acodiu a resposta de prompto; e passaria a sua vez, si o director não lhe deixasse tempo bastante para maior esforço do que fôra dado aos outros e sobretudo á mim – Afinal occorreu-lhe a resposta, e eu com o coração tranzido, cedi ao meu vencedor o lugar de honra que tinha conquistado de gráo em gráo, e conseguira sustentar havia mais de dous mezes.

      Nos trinta annos vividos desde então, muita vez fui esbulhado do fructo do meu trabalho pela mediocridade agaloada; nunca senti senão o desprezo que merecem

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