Desertos. Rui José Carvalho
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Aqui havia cortinas e as cortinas abriam-nos a noite.
Fingindo-nos mortos para a rotina, abríamo-nos com as cortinas. A rotina era a secura dos solos. Nós ainda vicejávamos. Entoávamos canções numa linguagem distante e nas canções entoadas distávamos do amor por milímetros.
Tudo falhou.
Tudo falhou como tudo sempre falha. Tudo o que quisemos foi desejado em demasia e a demasia entornou-nos borda fora.
Extravasados de nós somos agora esta angústia, todas as casas desertas minando-nos até aos ossos.
Desabitados no desamor, somos a desertificação das casas.
O escuro não chega. Agora o escuro não nos chega. Tornámo-nos brancos. Brancos e ressequidos como a branca cal das paredes que nos cercam. Nas paredes nos edificámos até à brancura da pele. Imiscuímo-nos na feitura das casas para que nos pregássemos na nossa fundação. Contudo, fundimo-nos com as paisagens. Somos aqueles que com as paisagens se fundem. Como todas as coisas tocadas pelos homens, as paisagens definham. Assim nos tornámos secos. Só teias de aranha nos habitam.
É isto.
É nisto que nos tornámos: corações empedernidos junto às teias.
Dar passos em redor da deriva; olhar para cima sem que se reze. Saber que no deserto não existem cruzes, tão só a persistência do vento ecoando com as intempéries. Aguardar as tempestades de areia. Coabitar com as tempestades. Sentir a areia a pesar, deixar que o ar assim nos rasgue os pulmões.
Viver a vida como ela é, com a dor apertada junto ao pescoço.
Soluçar. Persistir no soluço.
Encarar as metástases como rios. Ser como os rios sangrentos onde me habito, os conjuntos de células vibrando-me por dentro das vísceras.
Aguardar a imergência dos organismos, o crescimento inflamando a divisão celular. Os ciclos de vida, o envelhecimento e a morte.
Perscrutar a matéria orgânica. Ser a intensa deriva da matéria. Ser a genética dos corpos, o processamento orgânico dos materiais até à anormal proliferação da divisão celular, um tumor anichado junto ao peito. A germinação cancerígena habitando a viagem linfática, sanguineamente percorrendo os vários órgãos.
A matéria, a inflamação da matéria, o inorgânico protelado no orgânico.
Ninguém jamais venceu a guerra contra o corpo, nem mesmo Jesus, cuja carne sucumbiu ao Martírio da Cruz.
Água. Somos água escorrendo. Náufragos corpos buscando o estridente deserto, uma qualquer mágoa firmando todo este silêncio. De paradeiro incerto, sofridamente nos erigimos de encontro à estranheza do mundo.
Tempos atrás habitámos distantes lugares, longínquas terras vividas em contramão. Antes houve promessas e nas promessas ferozmente nos discorremos. Fomos ferozes de encontro às cidades, ferozmente escorrendo por fora do leito dos rios.
Somos agora regressados a casa. Firmados no sonho, no regresso reerguemos as cabeças decepadas. Somos de novo a afirmativa presença. Afirmativamente presentes apressamo-nos na escavação, no célere augúrio das coisas vindouras.
Antes. Antes houve poetas cantando o declínio.
Agora somos incertos. Incertas certezas desesperando a vicissitude.
Aqui aguardamos o declínio, a escassa sede dos augúrios. Somos agora desertos.
Longinquamente reflexos na mais íngreme estranheza, tornámo-nos náufragos. Náufragos desertos abundando entre as cores.
Gritamos: “aqui somos!”.
Ninguém nos ouve. Ninguém nos ouve porque ninguém há para nos ouvir. Náufragos. Náufragos até ao deserto.
Aqui, desde onde nos perecemos.
Ser o sucesso do corpo; ser amado pelas jovens mulheres antes da noite chegando. Curvilíneo, em curva gravitar o vórtice dos dias; impacientemente percorrer o estrondo do mundo até ao enegrecimento da carne. Ser tangente. Ao contrário da paciência, ser a primeira e última vez de todas as coisas.
Não esquecer nunca: envergar as sístoles e as diástoles como um troféu.
Em queda. Ser em queda. Quedar-me quase exangue de mim e dos outros. Ser farto. Estar farto de tudo e de nada. Procurar as formas e, com as formas, enformar a matéria.
Matar o tédio caindo em todos os precipícios. Cair. Cair e, de seguida, reerguer a queda. Ser a escalada das montanhas. Escalar montanhas com a dúvida às costas. Deixar depois a dúvida incrustada no cume, por cima da estupidez.
De rosto descoberto. Descobrir o rosto para que as lágrimas vertam na nudez. Ser ao contrário da contrariedade do mundo. Deixar que as lâminas me cortem, que o aço incida em minha carne. Tornar-me duro. Ser o aço por dentro.
Não representar papéis além do estritamente necessário. Sobrevir a dor. Não deixar nunca que a discrepância transpareça.
Ser o aço por dentro. Não deixar nunca transparecer que assim não é. Jamais; não esquecer jamais que assim deve ser.
Nasço-me nas palavras que me habitam para que nelas me julgue menos só. Contudo, jamais serei a salvo. Atolada nesta pele até aos ossos, a mentira é uma ferida que por dentro me mina.
Por dentro. Sou as feridas que me sangram.
Nunca fui são, verdadeiramente nunca o fui. Mesmo quando um dia acreditei que os meus passos me conduziriam a algum lugar.
Fui prestes na encarnação de personagens que não sou. Habitei as casas junto aos homens e nelas construí um império de derrotas.
Um dia acordarei com todas as coisas vibrando. Será esse o sinal de que não mais poderei vibrar.
Somos derrotados pela natureza das coisas.
Um dia acordarei com a vontade derrotada.
É inevitável.
É inevitável que assim seja, que os camiões cheguem para fazer a mudança.
Levarão tudo o que fui, todos os livros tragados na fúria, as jovens mulheres onde não mais me perderei.
Um dia será noite. Um dia será noite e a noite ficará.
A noite será íngreme e sem estrelas.
Restarei só.
Restarei só e serei doente, uma doentia mortalha por todos deixada ao abandono.