Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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confessadas os segredos de alcova"!

      Quando Amaro voltara a frequentar a Rua da Misericórdia, ficou contrariado. "Cá temos outra vez o marmanjo!", pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amélia tratava agora o pároco com uma familiaridade mais terna, que a presença dele lhe dava visivelmente uma animação singular, "e que havia uma espécie de namoro"! Como ela se fazia vermelha, mal ele entrava! Como o escutava, com uma admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé dele nas partidas de quino!

      Uma manhã, mais inquieto, veio à Rua da Misericórdia, - e enquanto a S. Joaneira tagarelava na cozinha, disse bruscamente a Amélia:

      — Menina Amélia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o Sr. padre Amaro.

      Ela ergueu os olhos espantados:

      — Que maneiras? Ora essa! Então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui de hóspede...

      — Pois sim, pois sim...

      — Ah! mas sossegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar para ao pé do homem.

      João Eduardo, tranquilizado, raciocinou que "não havia nada". Aqueles modos eram excessos de beatério. Entusiasmo pela padraria!

      Amélia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerara o escrevente um pouco tapado - e se ele percebera, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do cônego que era curtida em malícia! Por isso mal sentia Amaro na escada, daí por diante, tomava uma atitude distraída, muito artificial; mas, ai! apenas ele lhe falava com a sua voz suave ou voltava para ela aqueles olhos negros que lhe faziam correr estremeções nos nervos, - como uma ligeira camada de neve que se derrete a um sol muito forte, a sua atitude fria desaparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão contínua de paixão. Às vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava ali; e ficava toda surpreendida quando ouvia a um canto da sala a sua voz melancólica.

      Ela sentia de resto que as amigas da mãe envolviam a sua "inclinação" pelo pároco numa aprovação muda e afável. Ele era, como dizia o cônego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas exalava-se uma admiração por ele que fazia ao desenvolvimento da paixão de Amélia uma atmosfera favorável. D. Maria da Assunção dizia-lhe às vezes ao ouvido:

      — Olha para ele! É de inspirar fervor. É a honra do clero. Não há outro!...

      E todas elas achavam em João Eduardo "um presta para nada"! Amélia então já não disfarçava a sua indiferença por ele: as chinelas que lhe andava a bordar tinham há muito desaparecido do cesto do trabalho, e já não vinha à janela vê-lo passar para o cartório.

      A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo - na alma, que como ele dizia, lhe andava mais negra que a noite.

      — A rapariga gosta do padre, tinha ele concluído. E à dor da sua felicidade destruída juntava-se a aflição pela honra dela ameaçada.

      Uma tarde, tendo-a visto sair da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:

      — Eu quero-lhe falar, menina Amélia... Isto não pode continuar assim... Eu não posso... A menina traz namoro com o pároco!

      Ela mordeu o beiço, toda branca:

      — O senhor está a insultar-me! - e queria seguir, toda indignada.

      Ele reteve-a pela manga do casabeque: '

      — Ouça, menina Amélia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe. Tenho andado, que até se me parte o coração. - E perdeu a voz, de comovido.

      — Não tem razão... Não tem razão, balbuciava ela.

      — Jure-me então que não há nada com o padre!

      — Pela minha salvação!... Não há nada!... Mas também lhe digo, se tornar a falar em tal, ou a insultar-me, conto tudo à mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.

      — Oh menina Amélia...

      — Não podemos continuar aqui a falar... Está ali já a D. Micaela a cocar.

      Era uma velha, que levantara a cortina de cassa numa janela baixa, e espreita-la com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda ressequida encostada sofregamente á vidraça. Separaram-se então, - e a velha desconsolada deixou cair a cortina.

      Amélia nessa noite - enquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionários que então pregavam na Barrosa - disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:

      — Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem reparasse.

      Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assunção; e, apesar da recomendação de Amélia, os seus olhos não se despregavam dela, numa interrogação muda e ansiosa, já assustado que as desconfianças da mãe ou a malícia das velhas "andassem armando escândalo". Depois do chá, no rumor das cadeiras que se acomodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:

      — Quem reparou?

      — Ninguém. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.

      Desde então cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos à mesa, os segredos; e sentiam um gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflamava. Era para Amélia delicioso - enquanto o padre Amaro afastado tagarelava com as senhoras - adorar a sua presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos castamente aplicados às chinelas de João Eduardo que muito astutamente recomeçara a bordar.

      Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o pároco instalado ali todas as noites, com a face próspera, a pema traçada, gozando a veneração das velhas. "A Ameliazinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...": mas ele sabia que o pároco a desejava, a "cocava"; e apesar do juramento dela pela sua salvação, da certeza que não havia nada - temia que ela fosse lentamente penetrada por aquela admiração caturra das velhas, para quem o senhor pároco era um anjo: só se contentaria em arrancar Amélia (já empregado no governo civil) àquela casa beata: mas essa felicidade tardava a chegar - e saía todas as noites da Rua da Misericórdia mais apaixonado, com a vida estragada de ciúmes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até tarde; às vezes voltava ainda ver as janelas fechadas da casa dela; ia depois à alameda ao pé do rio, mas o frio ramaIhar das árvores sobre a água negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petróleo sufocava. Saía; e dirigia-se, devagar, à redação da Voz do Distrito.

      X

      O redator da Voz do Distrito, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Raquítico, por ter uma forte corcunda no ombro, e uma figurinha enfezada de ético. Era extremamente sujo; e a sua carita de fêmea, amarelada, de olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: Se você não fosse um raquítico, quebrava-lhe os ossos" - que, vendo na sua corcunda uma proteção suficiente, ganhara um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tomava mais suspeito aos burgueses sérios: atribuía-se a sua voz rouca e acre "a faltar-lhe as campainhas": e os seus dedos queimados terminavam em unhas muito compridas -

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