Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco - August Nemo Romancistas Essenciais

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Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.

      — Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava aflito quando lia.

      — E não se enganou - tornou o doente, voltando-se para o ferrador. - O pai arrastou Teresa ao convento.

      — Sempre é patife duma vez! - disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.

      Neste, lance, um observador pespícaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de inocente alegria.

      Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe chegou, dizendo:

      — Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

      "E necessário arrancar-te daí - dizia a carta de Simão. - Esse convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração".

      Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.

      Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.

      Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:

      — Desconfio de uma coisa, rapariga.

      — O que é, meu pai?

      — O nosso doente está sem dinheiro.

      — Porquê? O pai como sabe isso?

      — E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela pesava tanto como uma bexiga de porco cheia de vento.

      Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como há de ser...

      — Eu pensarei nisso, meu pai - disse Mariana. refletindo.

      — Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.

      — E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele dinheiro dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.

      — Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.

      Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico de escrúpulos, ou repugnância.

      Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em profundo cismar.

      — Pois não toma o caldinho? - disse ela com tristeza.

      — Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sozinho algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.

      — Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.

      Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.

      Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da moça; mas não lhe disse palavra alguma.

      E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele, um galã num entre ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Dist0 é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país, carroças e folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há, porque me dizem que há tudo.

      Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.

      A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:

      Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

      Com que agradeceria os desvelos de Mariana?

      Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?

      Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.

      As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia. Má situação!

      Lembrou-se de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua residência naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte misteriosa dos dois criados de Baltasar Coutinho?

      Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário para a jornada até Coimbra. Péssima situação!

      Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um sono profundo,

      E Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta, aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante pé. Abriu a carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu lugar, e tomou de um cabide as calças, colete e jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e não encontrou um ceitil.

      Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, conversou longo tempo com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas réplicas da filha, até que, a final, disse:

      — Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou

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