Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis
Чтение книги онлайн.
Читать онлайн книгу Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial) - Machado de Assis страница 17
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, — tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
— Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
28
Contanto que...
— Virgília? interrompi eu.
— Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra...
— Que Dutra?
— O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política. Vamos lá, aceitas?
Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto a examinar as duas coisas, a candidatura e o casamento, contanto que...
— Contanto quê?
— Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem casado ou homem público...
— Todo o homem público deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres; estou por tudo, fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o Parlamento são a mesma coisa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação, contanto que...
— Contanto quê?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.
— Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava, sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...
E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida, — o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.
29
A visira
Vencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgília e a Câmara dos Deputados. — As duas Virgílias, disse ele num assomo de ternura política. Aceitei-os; meu pai deu-me dois fortes abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim, reconhecia.
— Desces comigo?
— Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusébia...
Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. Creio que chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fez-me sentar ao pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de contentamento:
— Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra de mim...
Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. D. Eusébia começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo, posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rédea à conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim, os namoros também; confessou-me que era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra:
— Mamãe... mamãe...
30
A flor da moita
A voz a as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns instantes, ao ver gente estranha. Silêncio curto e constrangido. D. Eusébia quebrou-o, enfim, com resolução e franqueza:
— Vem cá, Eugênia, disse ela, cumprimenta o Dr. Brás Cubas, filho do Sr. Cubas; veio da Europa.
E voltando-se para mim:
— Minha filha Eugênia.
Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara. — Ah! travessa! dizia. Não imagina, doutor, o que isto é... E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me minha mãe, e, — direi tudo, — tive umas cócegas de ser pai.
— Travessa? disse eu. Pois já não está em idade própria, ao que parece.
— Quantos lhe dá?
— Dezessete.
— Menos um.
— Dezesseis. Pois então! é uma moça.
Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes, ereta, fria e muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do que era; seria criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...
Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi