Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III. Luis de Camoes
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Ha de ser todo meu bem.
Vejo-a n'alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que não vejo.
Se só de ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excellente
Mal poderei ser ausente,
Em quanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada,
E a memoria tanto voa,
Que se a não vejo em pessoa,
Vejo-a n'alma pintada.
O desejo, que s'estende
Ao que menos se concede,
Sôbre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, qu'em ausencia vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Qu'então não tenho que dar,
Quando me pede o desejo.
Como áquelle que cegou,
He cousa vista e notoria,
Que a natureza ordenou
Que se lhe dobre em memoria
O qu'em vista lhe faltou:
Assi a mi, que não vejo
Co'os olhos o que desejo,
Na memoria e na firmeza
Me concede a natureza
O natural que não vejo.
Sem vós, e com meu cuidado,
Olhae com quem, e sem quem.
Vendo Amor que com vos ver
Mais levemente soffria
Os males que me fazia,
Não me pôde isto soffrer;
Conjurou-se com meu Fado;
Hum novo mal me ordenou:
Ambos me levão forçado,
Não sei onde, pois que vou
Sem vós e com meu cuidado.
Não sei qual he mais estranho
Destes dous males que sigo,
Se não vos ver, se comigo
Levar imigo tamanho.
O que fica, e o que vem,
Hum me mata, outro desejo:
Com tal mal, e sem tal bem,
Em taes extremos me vejo:
Olhae com quem, e sem quem!
Amor, cuja providencia
Foi sempre que não errasse,
Porque n'alma vos levasse,
Respeitando o mal d'ausencia,
Quiz qu'em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado,
Eu e meu cuidado sós,
Proveo nisso de attentado,
Por não me ausentar de vós,
Sem vós, e com meu cuidado.
Mas est'alma, qu'eu trazia,
Porque vós nella morais,
Deixa-me cego, e sem guia;
Que ha por melhor companhia
Ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem,
Onde quer a forte estrella,
Sem alma, qu'em si vos tem,
Co'o mal de viver sem ella:
Olhae com quem, e sem quem!
Sem ventura he por demais.
Todo o trabalhado bem
Promette gostoso fruito;
Mas os trabalhos, que vem,
Para quem dita não tem
Valem pouco, e custão muito.
Rompe toda a pedra dura,
Faz os homens immortais
O trabalho quando atura;
Mas querer achar ventura,
Sem ventura, he por demais.
Minh'alma, lembrae-vos della.
Pois o ver-vos tenho em mais
Que mil vidas que me deis,
Assi como a que me dais,
Meu bem, ja que mo negais,
Meus olhos, não mo negueis.
E se a tal estado vim
Guiado de minha estrella,
Quando houverdes dó de mim,
Minha vida, dae-lhe a fim,
Minh'alma, lembrae-vos della.
Tudo póde huma affeição.
Tẽe tal jurdição Amor
N'alma donde se aposenta,
E de que se faz senhor,
Que a liberta e isenta
De todo humano temor.
E com mui justa razão,
Como senhor soberano,
Que Amor não consente dano.
E pois me soffre tenção,
Gritarei por desengano:
Tudo póde huma affeição.
Justa fué mi perdicion;
De mis males soy contento;
Ya no espero galardon,
Pues vuestro merecimiento
Satisfizo mi pasion.
Despues que Amor me formó
Todo de amor, cual me veo,
En las leyes, que me dió,
El mirar me consintió,
Y defendióme el deseo.
Mas el alma, como injusta,
En viendo tal perfeccion,
Dió al deseo ocasion:
Y pues quebré ley tan justa,
Justa fué mi perdicion.
Mostrándoseme el Amor
Mas benigno que cruel,
Sobre tirano traidor,
De zelos de mi dolor,
Quiso tomar parte en él.