Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros страница 29
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira. Amélia adiante palrava com o caseiro; e atrás Amaro, de cabeça baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amélia parou, fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
— Ó Antônio, disse, ensine o portão ao senhor pároco. Muito boas tardes, senhor pároco.
E através das terras úmidas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.
A Sra. D. Maria da Assunção ainda lá estava, sentada numa pedra, tagarelando com o tio Patrício; um bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
— Que é isso, tonta? De onde vens tu a correr, rapariga? Credo! que doida!
— Vim a correr, disse ela toda vermelha, sufocada.
Sentou-se ao pé da velha; e ficou imóvel, com as mãos caídas no regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos, os olhos fixos numa abstração. Todo o seu ser se abismava numa só sensação:
— Gosta de mim! Gosta de mim!
Estava há muito namorada do padre Amaro - e às vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por imaginar que ele não percebia nos seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu ser sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade de pássaro. Depois via-o um pouco triste. Por quê? Não conhecia o seu passado; e lembrada do frade de Évora, pensou que ele se fizera padre por um desgosto de amor. Idealizou-o então: supunha-lhe uma natureza muito terna, parecia- lhe que da sua pessoa airosa e pálida se desprendia uma fascinação. Desejou tê-lo por confessor: como seria estar ajoelhada aos pés dele, no confessionário, vendo de perto os seus olhos negros, sentindo a sua voz suave falar do Paraíso! Gostava muito da frescura da sua boca; fazia-se pálida à idéia de o poder abraçar na sua longa batina preta! Quando Amaro saía, ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.
Se Amaro jantava fora com o cônego Dias, estava todo o dia impertinente, ralhava com a Ruça, às vezes mesmo dizia mal dele, "que era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito". Quando ele falava de alguma nova confessada, amuava, com ciúme pueril. A sua antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia um vago amor físico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro, e pareciam-lhe dependências da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus particular. E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pàroco!
A tarde caía quando D. Maria e Amélia voltaram para a cidade. Amélia adiante, calada, chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria da Assunção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata. Ao passarem junto à Sé tocou a Ave-Maria. E Amélia, rezando, não podia destacar os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a bênção dos degraus do altar-mor: e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara e a mulher do governador civil, tão orgulhosa com o seu nariz de cavalete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos, e achavam decerto também bonitos os seus olhos negros! E era ele que a tinha apertado nos braços, ao pé do valado! Sentia ainda no pescoço a pressão cálida dos seus beiços: uma paixão flamejou como uma chama por todo o seu ser: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma numa devoção:
— Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!
No adro lajeado cônegos passeavam, conversando. A botica defronte já tinha luz, os bocais reluziam; e por detrás da balança a figura do farmacêutico Carlos, com o seu boné bordado a miçanga, movia-se majestosamente.
VIII
O padre Amaro voltara para casa aterrado.
— E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar à mãe, ao escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreensão - dizer-lhe com pompa: - "São esses desregramentos que desonram o sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" - Poderiam desterrá-lo outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?
E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito - a sua paixão, crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!
Decidiu-se então a ir falar ao cônego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber forças duma razão, duma experiência alheia: costumava consultar ordinariamente o cônego que, pelo hábito da disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e não perdera, desde o seminário, a sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma casa e uma criada para ir viver só, necessitava o auxílio do cônego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão avermelhado. Os tições da braseira, cobertos duma pulverização de cinza, revermelhavam vagamente. E o cônego, sentado numa cadeira de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, amodorrado no calor do lume, com o Breviário sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como ele.
Aos passos de Amaro o cônego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
— Ia adormecendo, hem!
— É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?
— Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?
— Vim por aqui.
— Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão- cheia! Eu carreguei-me um bocado, disse o cônego rufando com os dedos na capa do Breviário.
Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:
— Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: - Aconteceu-me um caso! - Mas reteve-se, murmurou: - Estou hoje esquisito; tenho andado ultimamente fora dos eixos...
— Você, com efeito, anda amarelo, disse o cônego, considerando-o. Purgue-se,