A Ordem. Daniel Silva
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Chiara olhou de relance para o posto dos carabinieri.
— Vigiados por homens armados.
No dia seguinte, quarta-feira, Gabriel esgueirou-se do apartamento depois dos seus telefonemas matinais e, com uma caixa de madeira envernizada debaixo do braço, caminhou até à Igreja da Madonna dell’Orto. A nave central estava na penumbra e os andaimes ocultavam os arcos ogivais das naves laterais. A igreja não tinha transepto, mas, ao fundo, existia uma abside com cinco lados que albergava o túmulo de Jacopo Robusti, mais conhecido como Tintoretto. Foi aí que Gabriel encontrou Francesco Tiepolo. Era um homem grande como um urso, com uma barba crespa, grisalha e negra. Como era habitual, envergava uma túnica branca solta e um lenço amarrado despreocupadamente à volta do pescoço.
Deu um abraço apertado a Gabriel.
— Sempre soube que ias voltar.
— Estou de férias, Francesco. Não nos entusiasmemos demasiado.
Tiepolo acenou a mão como se estivesse a tentar afugentar os pombos na Piazza di San Marco.
— Hoje estás de férias, mas, um dia, vais morrer em Veneza. — Baixou o olhar para o túmulo. — Suponho que teremos de enterrar-te noutro lugar que não seja uma igreja, não é?
Entre 1552 e 1569, Tintoretto criara dez pinturas para a igreja, incluindo a Apresentação da Virgem no Templo, que pendia no lado direito da nave. Era uma tela gigantesca, de 4,80 por 4,29 metros, e uma das suas obras-primas. A primeira fase do restauro, que era remoção do verniz desbotado, estava concluída. Faltava apenas o retoque das partes da tela deterioradas pela passagem do tempo e condições ambientais. Seria uma tarefa monumental. Gabriel calculava que um único restaurador pudesse demorar um ano a concluí-la, se não mais.
— Quem foi a pobre alma que removeu o verniz? O Antonio Politi, espero.
— Foi a Paulina, a rapariga nova. Tinha esperanças de poder observar-te a trabalhar.
— Suponho que a tenhas desenganado dessa ideia.
— Taxativamente. Ela disse que podias ficar com a parte do quadro que quisesses, exceto a Virgem.
Gabriel ergueu o olhar para a parte superior da imponente tela. Maria, a filha de três anos de Joaquim e Ana, judeus de Nazaré, subia hesitantemente os quinze degraus do Templo de Jerusalém em direção ao sumo sacerdote. Alguns degraus abaixo, havia uma mulher reclinada, vestida com um manto de seda castanha. Estava a abraçar uma criança pequena, mas era impossível perceber se se tratava de um rapaz ou de uma rapariga.
— Ela — disse Gabriel. — E a criança.
— Tens a certeza? Precisam de muito trabalho.
Gabriel sorriu tristemente, com os olhos na tela.
— É o mínimo que posso fazer por eles.
Ficou na igreja até às duas da tarde, mais tempo do que pretendia. Nessa noite, ele e Chiara deixaram as crianças com os avós e jantaram a sós no restaurante que ficava no outro lado do Grande Canal, em San Polo. No dia seguinte, quinta-feira, levou as crianças para um passeio de gôndola, de manhã, e trabalhou no Tintoretto do meio-dia às cinco, hora a que Tiepolo trancava as portas da igreja.
Chiara decidiu fazer o jantar no apartamento. Depois, Gabriel supervisionou a batalha noturna conhecida como hora do banho, antes de se retirar para a proteção da chupá para lidar com uma pequena crise em casa. Era quase uma da manhã quando se arrastou para a cama. Chiara estava a ler um romance, alheada da televisão sem som. O ecrã mostrava uma transmissão em direto da Basílica de São Pedro. Gabriel aumentou o volume e soube que um velho amigo falecera.
[1] Tenda sob a qual se realiza o casamento judaico. (N.T.)
[2] Terreiro, em italiano. (N.T.)
[3] Pátio, em italiano. (N.T.)
3
CANNAREGIO, VENEZA
Mais tarde, nessa manhã, o corpo de Sua Santidade, o papa Paulo VII, foi levado para a Sala Clementina, no segundo andar do Palácio Apostólico. Ali permaneceu até ao início da tarde seguinte, quando foi transferido, em procissão solene, para a Basílica de São Pedro, para dois dias de exibição pública. Quatro guardas suíços, com as alabardas a postos, vigiavam o pontífice falecido. A imprensa do Vaticano deu grande destaque ao facto de o arcebispo Luigi Donati, o assistente e confidente mais próximo do Santo Padre, raramente se ter afastado do seu lado.
A tradição da Igreja ditava que o funeral e o enterro do papa ocorressem quatro a seis dias após a sua morte. O cardeal camerlengo, Domenico Albanese, anunciou que teriam lugar na terça-feira seguinte e que o conclave se reuniria dez dias depois. Os vaticanisti previam uma disputa renhida e fraturante entre reformadores e conservadores. As apostas centravam-se no cardeal José Maria Navarro, que usara a sua posição como guardião doutrinário da Igreja para construir uma base de poder no seio do Colégio Cardinalício que rivalizava, até, com a do papa defunto.
Em Veneza, onde Pietro Lucchesi reinara como patriarca, o presidente do município declarou três dias de luto. Os sinos da cidade ficaram em silêncio e houve um serviço religioso moderadamente participado na Basílica de São Marcos. À exceção disso, a vida prosseguiu como normalmente. Uma pequena acqua alta inundou uma parte da Santa Croce e um cruzeiro colossal colidiu contra um cais do canal da Giudecca. Nos estabelecimentos onde os locais se reuniam para beber um café ou um copo de aguardente contra o frio outonal, raramente se ouvia o nome do falecido pontífice. Cínicos por natureza, poucos venezianos se davam ao trabalho de assistir à missa regularmente e menos ainda viviam as suas vidas de acordo com os ensinamentos dos homens do Vaticano. As igrejas de Veneza, as mais belas de toda a Cristandade, eram locais onde os turistas estrangeiros iam para contemplar arte renascentista.
Contudo, Gabriel seguia os acontecimentos em Roma com um interesse mais do que superficial. Na manhã das exéquias fúnebres do papa, chegou cedo à igreja e trabalhou sem interrupções até ao meio-dia e um quarto, quando ouviu o eco oco de passos na nave. Levantou a sua viseira de ampliação e abriu cuidadosamente a cortina de lona que tapava a sua plataforma. O general Cesare Ferrari, comandante da Divisão de Defesa do Património Cultural dos Carabinieri, mais conhecida como Brigada de Arte, devolveu-lhe um olhar sem expressão.
Sem que tivesse sido convidado, o general atravessou a cortina e contemplou a enorme tela, banhada pela luz branca abrasadora de dois candeeiros de halogéneo.
— É um dos melhores dele, não acha?
— Estava sob enorme pressão para provar o seu valor. Veronese tinha sido reconhecido publicamente como o sucessor de Ticiano e o melhor pintor de Veneza. O pobre Tintoretto já não recebia o mesmo tipo de encomendas de antes.
— Esta era a paróquia dele.
— Não me diga.
— Vivia ao virar da esquina, na Fondamenta di Mori. — O general afastou a lona para o lado e dirigiu-se para a nave. — Antigamente, havia