Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo Romancistas Essenciais

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tu, mulher sem espírito que não tens ânimo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?

      — Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.

      — Que estás tu a dizer, mal-ensinado?

      O menino quis chorar, com o que se mostrou escandalizado por extremo o tirano da família, que, para o fazer chorar com mais gosto, segundo disse, lhe deu três ou quatro cipoadas fortes, depois das quais José mal se pôde ter em pé. Joana não podendo ver o filho apanhar sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das mãos o pequeno, mas Joaquim repeliu-a com tanta força, que a fez cair por terra; e voltando-se imediatamente para José, perguntou-lhe com gesto e voz de aterrar:

      — Então, mata-se ou não se mata o coelho, José?

      — Mata-se, papai — respondeu o pequeno com as faces banhadas de lágrimas ainda.

      — Não quero que chores. Quem é homem não chora quem é homem faz chorar.

      E dando o andar para a casa, com o filho pela mão:

      — Vais ver agora de que modo morre o coelho, — disse com expressão que se não pode descrever.

      — Meu Deus, meu Deus! Que desgraça esta, que desgraça minha! exclamou Joana quando os viu desaparecer na volta do caminho.

      Os corações maternais têm inspirações angélicas e grandes. Joana, que não se havia levantado ainda, pôs-se de joelhos no meio da natureza verde e esplêndida que a tinha recebido em sua queda, e, elevando os olhos úmidos e tristes ao céu profundo e belo que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça enviou a Deus esta súplica cheia de amor e filosofia:

      — Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai-lhe sentimentos brandos por quem sois, meu Deus. Que ele seja bom e que vos conheça e tema.

      Não pôde ir adiante a desventurada mãe cuja voz fora embargada por lágrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer. Mas de repente, como se tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo todas as suas idéias um instante obliteradas pela intensa dor, Joana fez em pedaços a tábua, e entupiu com pedras e maravalhas o buraco que com aquela armava ciladas aos inofensivos filhos do deserto. Tendo assim destruído a armadilha, tomou o caminho de casa a qual se lhe deparou um espetáculo em que ela nunca imaginar a e que por um triz não abateu de todo o seu cansado espírito. Uma forca havia sido levantada com ramos verdes no terreiro em sua ausência, e dela pendia por uma embira o coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço distendido, os belos olhos empanados. José, não só não chorava, mas até se mostrava indiferente ao espetáculo repugnante, como se já não fosse o mesmo que poucos instantes antes havia manifestado os mais generosos sentimentos a favor da vítima. O reverso deste recente passado representava-se agora aos olhos de Joana: o pequeno prorrompia em aplausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do animal que Joaquim, por entre chufas grosseiras e de mau gosto, impelia de quando em quando com a mão ensangüentada e torpe.

      Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia infame, a sua justa e bela indignação.

      — Homem cruel, onde aprendeste esta lição indigna que acabas de ensinar a teu filho?

      A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.

      — Quem matou o coelho, José? perguntou Joana ao menino, para o qual tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável do estranho delito.

      — Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.

      Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não se demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava

      — Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso? Quererás tomar-me contas, Joana?

      — Eu não, Deus sim; Deus há de tomar-te-as um dia, homem sem coração.

      — Deus! Quem é Deus, toleirona? Quem já o viu? Quem já ouviu a sua voz? Estás caducando, mulher.

      Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silêncio, Joana resignou-se a dar-lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de lágrimas.

      Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso que, tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de arroz-doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais força do que ele, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade, mas até bateu em José com vontade, sem contudo se sair ileso, porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou da coxa um pedaço de carne com os dentes.

      Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um punhalzinho e, chamando o filho, entregou-lhe a nova arma, mediante este discurso:

      — Sabes para que fim te dou este ferro, José? É para não sofreres desaforo de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o que te ofender. Se alguma vez entrares em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo, dou-te uma surra de tirar pele e cabelo, e corto-te uma orelha para ficares assinalado. Toma o ferro.

      José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência do pai com toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas ordens.

      Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a maiores excessos, aguardou a sua ausência, e quando foi tempo pregou a José as lições de moral que seguem:

      — Meu filho: Deus, nosso pai, que está no céu, não pode receber bem os feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou há pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões descorteses e muito menos ações ofensivas; ainda que seja um negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela idade dele. Seja a tua única vingança, quando alguém te ofender, pacífica retirada; não há vingança a maior, nem mais digna: procedendo deste modo, terás, meu filho, agradado a Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que se houveres proferido, em resposta, palavras injuriosas ou insultuosas contra o teu ofensor. As armas só servem para excitar à prática de crimes; os homens bons não trazem consigo armas. Dá-me o punhal, de que teu pai te fez presente e recebe em troca este rosário que te dou para tua consolação nas tribulações[1]. Reza por estas contas, e encomenda-te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando, virás a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe que morreria de dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem.

      De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais tarde o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira?

      Não ficou aí a manifestação do seu desagrado. Voltando-se para Joana:

      — Se continuares a fazer asneiras como esta — disse ele — acabas queimada, bruxa; e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.

      O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo, mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que. se ele repetisse a cena do rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.

      Joaquim

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