Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo
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João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do doente.
Acordou Simão.
— Não sabe!? - exclamou ela com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente contrafeito.
— Que é, Mariana?
— Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.
— Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?
— Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.
— Isso espanta-me!... E não me escreveu?
— Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu... Poderá ser?
— Poderá... Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte dos homens.
— Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai disse que não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar nisso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?
— Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.
Nã0 achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura que o rosto do mancebo exprimia.
Veio com o "caldinho" - diminuitivo que a retórica duma linguagem meiga sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, ao lado da travessa com meia galinha loura, de gorda.
— Tanta coisa! - exclamou, sorrindo, Simão.
— Coma o que puder - disse ela corando. - Eu bem sei que os senhores da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena; e coma sem nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar à loja, por pensar que vossa senhoria não quisera ontem comer por se atrigar da outra.
— Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.
— Mas coma por eu lhe pedir... Perdoe o meu atrevimento... Faça de conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...
— Que o céu me dava em si a amizade duma irmã...
— Pois aí está...
Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao contentamento da carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjetura de que era amado daquela doce criatura. Entre si dizia que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal afeição quando não tinha alma para lha premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor que se inspira e não comparte. Nas máximas aflições, nas derradeiras horas do coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem já não pode achar no amor diversão das penas, nem soldar o último fio que se está partindo. Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for, no amor que nos dão nós graduamos o que valemos em nossa consciência.
Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerências, absurdas e vícios no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástíca vai vivendo e morrendo.
IX
Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a curiosidade do estudante era já sofrimento.
— Estará seu pai preso?! - disse ele a Mariana.
— Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana - respondera ela.
E Simão replicara:
— E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos ficarão aqui?
— Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...
— Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua alma. Diga...
— Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no começo...
Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo esta idéia torva, e afrontosa à singela rapariga: - "Pensará ela em me desviar de Teresa, para se fazer amar?"
Pensava assim quando chegou o ferrador.
— Aqui estou de volta - disse ele com semblante festivo. - Sua mãe mandou-me chamar...
— Já sei... E como soube ela que eu estava aqui?
— Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria já tinha ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas eu, cá como pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o convento. Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado de uma queda que dera do cavalo abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou dai a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Aí o tem tal e qual; não sei quanto é.
— E não me escreveu?
— Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor - respondeu com firmeza mestre João - e também me recomendou que não lhe escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai soubesse que o menino cá estava, ia tudo raso lá em casa. Ora ai está.
— E não lhe falou nos criados de Baltasar?
— Nem um pio!... Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.
— E que lhe disse da senhora D. Teresa?
— Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.
Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhando da estranha liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho da casa, exclamava:
— Arranjou muito bem a mentira!
— Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste tu com essa tua cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em que ele te dê bois a troco de bezerros.
— Eu não fiz isto por interesse, meu pai... - atalhou ela, ressentida.
— Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado; quem semeia, colhe.
Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: - Ainda bem que ele não pode pensar de mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho esperanças