Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo
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A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe apenas as dos condiscípulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no cárcere de seis meses, dando-lhe alentos e recursos, que seu pai lhe não dava, e sua mãe escassamente supria. Estudava com fervor, como quem já dali formava as bases do futuro renome e da posição por ele merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A ninguém confiava o seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que folgava o espírito da tarefa da ciência. A apaixonada menina escrevia-lhe a miúdo, e já dizia que a ameaça do convento fora mero terror de que já não tinha medo, porque seu pai não podia viver sem ela.
Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em pontos difíceis das matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que os lentes e os condiscípulos o houveram como primeiro premiado.
A este tempo. Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto, licenciou-se para estudar na Universidade as matemáticas. Animou-o a notícia do reviramento que se dera em seu irmão. Foi viver com ele; achou-o quieto. mas alheado numa idéia que o tornava misantropo e intratável noutro gênero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da separação um desgraçado amor de Manuel Botelho a uma açoreana casada com um acadêmico. A esposa apaixonada perdeu-se nas ilusões do cego amante. Deixou o marido e fugiu com ele para Lisboa, e daí para Espanha. Em outro relanço desta narrativa darei conta do remate deste episódio.
No mês de fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de Tereza. No seguinte capítulo se diz minuciosamente a peripécia que forçara a filha de Tadeu de Albuquerque a escrever aquela carta de pungentíssima surpresa para o acadêmico, convertido aos deveres, à honra, à sociedade e a Deus pelo amor.
III
O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia despicando; fingia-se invulnerável à detração; mas de dia para dia se lhe azedava a bílis; e é de crer que, se o não contivessem considerações da família, sofreria menos, desabafando pela boca dum bacamarte, arma da predileção dos Botelhos Correais de Mesquita. Seria impossível o reconciliarem-se.
Rita, a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto de Simão, e viu a vizinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia Teresa que era aquela menina a mais querida irmã de Simão, e a que mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial indiferença, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo. A filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo da janela, porque sua mãe tinha proibido às filhas de trocarem vistas com pessoa daquele casa.
No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se a um pouco do peitoril das janelas; e assim, ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Tereza, mais pelo movimento dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram demorar-se em palestras a meia voz. Tereza falava de Simão, contava à menina de onze anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser nada sua irmã, recomendando-lhe muito que não dissesse nada à sua família.
Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela.
— Olé! - disse ele à pálida menina - Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa de minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro, que é um digno genro de seu pai.
Tereza não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Tadeu de Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo represada, bateu no rosto do vizinho, que não ousou replicar-lhe.
Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando inocentemente, por trejeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não voltasse àquela janela.
Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho, de Castro-d'Aire, senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão. Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consistência para 50breviver a uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores, tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: "Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras". Isto é o mais seguro; mas não é infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao conto.
Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez logo foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro-d'Aire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento.
Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa, quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado de Castro-d'Aire, atribuindo a frieza de sua prima a modéstia, inocência e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre daquela alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara de modo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica menina:
— É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
— Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.
O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo, respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda assim, quis ele no momento persuadir-se que a boa