Contos Phantasticos. Braga Teófilo

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Contos Phantasticos - Braga Teófilo

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fitou-me com um olhar profundo; o semblante era magestoso e santo, como o frontispicio de uma cathedral da Edade média; as flexas, as linhas architectonicas a infinitivarem-se para o alto, eram os seus cabellos; o olhar, o olhar que me opprimia n'esse instante, era mysterioso como uma ogiva sombria. Tive o medo do neophyto, quando ouve mugir a caverna, e escoar-se a brisa gelida e olorante pela fenda do penhasco, e quasi que se esvae em terra sem sentidos, ao vêr attonito as convulsões do hierophante. Emma perguntou-me se eu cria nas relações com o mundo invisivel. Hesitei um instante, depois volvi:

      – Creio, mas não as sei demonstrar por uma fórmula, que, embora refutavel, tenha valor philosophico. – Ella ouviu-me com o pezar e serenidade de uma joven esposa na sua viuvez, que ouve o filhinho a perguntar-lhe pelo pae. Depois murmurou, encostando a face sobre o meu peito:

      – És tão novo ainda, e porque matas em ti já o sentimento pela reflexão? A reflexão é fria, é terrena, não comprehende sem decompôr para recompôr. Como se ha de ella elevar ao simples, ao absoluto, que tem por attributo supremo a indivisibilidade? A luz, que é incoercivel, não se espelha na face quieta do lago? O sentimento é assim; só elle te póde levar além das relações e das contingencias. A substancia é unica; esta essencia d'ella é que prende pela unidade a multiplicidade dos attributos. Todas as vezes que te absorveres na unidade que te allia como attributo ou modo á substancia, entraste na essencia de todas as cousas, porque o simples que actua n'esse momento em ti, é o mesmo em que tudo existe. Vibra em ti a harmonia universal.

      E continuou com palavras quasi imperceptiveis. Estava em extasis, no extasis da abstracção, como o sentia Newton quando determinava a essencia de uma ordem de factos complexos, na lei que havia ficar eterna, e a que havia imprimir o seu nome. Tive vontade de lançar-me por terra, diante d'aquelle espirito incomprehensivel; precipitava-me se ella me dissesse como satanaz, quando arrebatou Jesus ao pinaculo do templo: —Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me.

VII

      Quando Emma saiu da sua mudez sublime, recostou-se sobre o meu hombro com uma graça infantil:

      – Ainda não sabes porque ando triste? Olha, uma tarde, puz-me a escutar o murmurio de um regato; parecia-me ser uma musica interior. Tive vontade de saber o que dizia, de confidenciar com elle, de communicar minha alma, que aspirava n'uma sêde de amor. Ao trepidar mavioso da vêa crystallina, scismava, devaneiava, enleiada, embevecida. Adormeci. Pareceu-me então aquelle cicio, como de azas de um cherubim que baixasse a meu lado; via a claridade de alvura de suas roupagens longas, estava silencioso ao pé de mim. Mostrava a expressão da serenidade augusta, uma apparencia que consolava. Acordei, e o mundo affigurou-se-me um desterro, a vida um carcere, tinha uma impaciencia de voar, de fugir, o desejo irrepresivel de tornar a vêr o semblante risonho d'aquelle que me veiu mostrar o mundo intransitavel para a vida, como sarçal espinhoso. De outra vez appareceu-me, brilhante como Iahveh na sarça ardente. Era sempre silencioso. O amor emmudecia-me diante d'elle, quiz seguil-o na visão que se esvaecia lentamente, mas o corpo estava preso aos limos terrenos, como o cordeiro que se prende nas urzes do matagal. A ancia do extremo esforço despertou-me. Foi assim que nasceu essa melancholia profunda, concebida diante do impossivel. Mais tarde conheci o mysterio da vontade; isolei-a em mim, para revocar o ente dos meus sonhos á realidade de um instante. Quasi que me abrasava na intensidade do querer. Elle appareceu-me mais triste. Perguntei-lhe se amava? Sorriu-se. Que era preciso para completarmos uma mesma essencia? o sorriso converteu-se em uma alegria doida, e disse-me vagamente – vôa da terra. Nunca mais tornou a visitar-me no desolamento em que vivo. A vida assim é o vegetar do lichen na humidade das lagrimas derramadas de hora em hora. Porque não hei de voar da terra?

VIII

      Ouviu-se trindades n'esse instante; cerrava-se a noite, frigida; o luar vinha saudoso. Emma pediu-me para deixal-a só. Por alta noite via-se a luz derramar-se pela vidraça do seu quarto, luz viva, silenciosa, como da alampada do philosopho hermetico surprehendendo a natureza em algum dos seus segredos mais reconditos.

      Emma lia no livro predilecto, que eu deparára aberto sobre o regaço. Pouco depois começou a alvorada. Quando o silencio era mais solemne e a natureza inteira parecia reconcentrar-se em santos mysterios, sentiu-se em casa um estrondo surdo, como o baque de um corpo morto, depois o bracejar, de quem se debatia nas vascas do paroxismo. Ergueram-se á pressa, foram apoz o ecco. Era no quarto de Emma. Seria algum pezadello longo? A porta cedeu á promptidão do soccorro. Foram encontral-a em terra, morta, a pouca distancia do fogão, que saturava o ar ambiente de exhalações carbonicas. O corpo já estava frio; o rosto tinha a pallidez do marmore. A pouca distancia d'ella estava aberto o livro fatal das exaltações mysticas de Swedenborg.

      Lia-se esta phrase profunda:

      «A innocencia dos céos produz uma tal impressão na alma, que os que são affectados d'ella guardam um transporte que lhes dura toda a vida, como eu mesmo experimentei. Basta talvez ter uma minima percepção para ser para sempre mudado, para querer ir aos céos e entrar assim na esphera da Esperança.»

      Seguiam-se outras palavras. Tive medo de lêr mais, porque começava tambem a sentir a seducção da melancholia e reconcentração subjectiva, que leva ao suicidio.

      O véo

      Tive apenas um amigo na infancia.

      Sinto abrir este conto com a minha personalidade; e, sem pretenções a humorismo, nem a estylo digressivo, conheço que a pessoa de um auctor inculcando-se na sua obra produz o effeito desagradavel, que o senso esthetico original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse tambem a palheta, o cavallete e os pinceis. O valor da personalidade pouco é; os antigos comprehenderam-n'a perfeitamente, quando deram o nome de persona á mascara que o actor trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caracter, revelado na vontade, são immanentes no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parenthesis ahi vão algumas linhas sobre a pessoa do meu unico e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de selecta. Não nos démos de repente. Tinhamos o mesmo nome de baptismo, faziamos annos no mesmo dia, começámos a versejar ao mesmo tempo; a affinidade electiva entre nós não provinha d'estas coincidencias, nunca reparámos n'ellas; era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na eschola fômos sempre antagonistas; quando passámos a estudar latim, ficámos surprehendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horæ. Ainda os mesmos desforços, o mesmo orgulho. Então já nos consultavamos sobre alguma duvida de syntaxe, como de potencia a potencia. Mais tarde encontrámo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as prelecções estupidas de logica, a logica que nos havia de tornar máos, capciosos, ergotistas. Já não nos temiamos, eramos amigos, tinhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidencias estreitar mais esta affeição. Foi elle o primeiro a fazel-as. Não sei se era amor, compaixão ou cynismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

      «Eu tive uma prima, não sei em que gráo, culpa das subtilezas canonicas. A pobre criança possuia uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A côr morena dizia tão bem com as linhas nitidas da physionomia arabe, que ella sabia animar com um ár doloroso de uma melancholia expressiva, que se lhe reflectia na face! Eu ficara orphão de mãe e costumara-me a brincar sósinho; ella procurava-me na minha solídão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incommodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indifferença e para disfarçal-a trepava acima das arvores carregadas de fructos do pomar onde passavamos o verão, e de lá deixava cahir aquelles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ella aparava-os no regaço com a affabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

      «Afinal teve vergonha de mim; córava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. N'este tempo contava eu algumas lições de desenho; os meus arabescos tinham uma frescura de innocencia, uma rudeza que parecia uma creação pura arte medieval. Eu tinha a monomania de esboçar cabeças. Não sei quem na familia, me pediu

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