Contos Phantasticos. Braga Teófilo
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Um dia saí para respirar o ár livre de uma bella manhã de verão; uma veia sarcastica, provocadora, não deixava harmonisar-me com a serenidade da natureza. Vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro, fumando uma ponta de cigarro. A distancia ainda comecei a analysal-o; cada vez que o fitava sentia em mim uma hilaridade irrepressivel; parecia-me uma cara insignificativa. De mais perto representava-me uma incarnação do grotesco, do comico objectivo, como se encontra nas goteiras das cathedraes da Edade media. Trazia uma vestimenta velha, esfarrapada, que produzia uma antithese perfeita com a sua edade. Mais ao pé, vi que tinha um fulgor de vida nos olhos, o movimento, a expressão de uma intensa actividade interior. Eu tinha caminhado para elle com um riso mofador, com pretensões a observal-o, este casquilho em quinta mão, e fui-lhe ao encontro a pretexto de accender um charuto.
Conheci então o valor da phrase com que o povo exprime um desgosto intimo e repentino: caiu-me o coração aos pés. Via n'aquelle fato esfarrapado de escovado, a lucta de uma alma, que arcava com a miseria, de um homem, que aspirava á decencia, e que proseguia temeroso, como conhecendo que a vestimenta o degredava e o destituia de importancia, que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem. Assim explicava commigo aquelles áres affectados de elegancia, que despertaram a risada, que resôou só dentro em mim. Era tambem criança, tinha uma figura trigueira, uma certa vivacidade de movimentos, uma timidez que se não accusa e se transforma em reconhecimento á menor consideração.
Pedi-lhe lume com um tom levissimo de ironia. A affabilidade desarmou-me; o coração doeu-se ao primeiro impulso de sua crueldade. Tinha vontade de confessar-me seu amigo; era-o n'esse instante, com todas as veras de alma.
Dias e noites a imagem do pobre rapaz a fluctuar-me na mente; eu estava indisposto commigo, procurava equilibrar a vida de modo que podesse alcançar essa virtude sublime da bondade, filha quasi sempre da serenidade e da superioridade de espirito. Era ainda cedo para mim. Não tornára mais a vêl-o: julguei-o uma apparição diabolica, que viera inverter uma acção innocente da vida em uma preoccupação, que me perturbava a tranquilidade.
Uma noite, saia eu do theatro: o frio regelava os membros, a escuridão era profunda como as trevas visiveis de que falla Milton. Esperei á porta que escampasse. Por um acaso feliz deparei a meu lado com o mesmo sujeito que um dia soube inverter-me um riso insignificativo em remorso. Tinha ainda a mesma compostura, esse apuramento que fazia rir os que não soubessem penetrar os dolorosos mysterios da sua existencia.
O pobre rapaz, não sei que franqueza leu no meu rosto, que se chegou para mim. Poz-se a commentar o espectaculo; pouco depois, estiou e partimos juntos. Até aqui nada de interessante.
– Quanto mais estudo (disse-me elle, cansado de andar e de fallar), tanto mais se me alarga a solidão do espirito; cada dia encontro menos pessoas com quem prive, caminho, e a cada passo me vão ficando mais longe. Quem não entender isto e se revoltar contra a minha frieza, dirá que é orgulho, e egoismo até; os que se doerem de mim dirão que é misanthropia. A meditação é como um segredo, que pésa quando não ha a quem se conte; mas se eu encontrasse uma mulher a falar-me de amor, sacrificava-me a ella, para vêl-a mais ditosa que a pobre Frederica de Göethe. É a primeira vez que conversamos. O meu amigo deve estranhar esta liberdade; sou assim, amo a franqueza quando não busca rodeios para convencer, e tem a força da expansão sincera, a ingenuidade simples, que não sabe alliar a amisade com as pragmaticas. A franqueza d'este modo admira-se, e eu tanto mais, porque a tenho visto sempre usada como pretexto para dizer insultos impunemente. Acho-me solitario no meio da sociedade, e tenho ainda não sei que terror de me vêr perdido, atropellado entre as massas. Vivo assim desde criança; como criança fui tambem poeta, cantei porque tinha medo, queria distrahir-me. Eu chamo-lhe meu amigo, porque me escuta; era quanto bastava para lhe ficar reconhecido. A maior parte das pessoas que me ouvem riem-se de mim. Falo sobre a genese das religiões, a origem dos governos, as relações da arte com a sociedade, todos os grandes problemas que nos agitam; abanam a cabeça, e dizem com ár compassivo: «Utopias dos vinte annos.» Outras vezes, descrevo a formação da terra, procuro explicar as evoluções da anthropogenia com a cosmogonia, o aperfeiçoamento dos sêres e a sua decadencia pelo gráo do calor que a materia conserva e vae irradiando; obedeço á pressão da causalidade que me obriga a explicar a mim mesmo os phenomenos que vejo, e riem-se, perguntam-me onde estudei, que diplomas tenho das Academias, e voltam-me as costas ludibriando-me, porque não querem admittir a sciencia sem a auctoridade, vêem como profanação um leigo explicar o que só está á altura da intelligencia dos cathedraticos. Tenho tido muitos d'estes desgostos na vida. Os homens que têm certa bondade, tambem me dizem, que a edade me fez todo idealista, que os annos me darão um caracter pratico de que careço. Ás vezes, tendo passado a noite em vigilia a pensar, cheio de frio, com fome, canso-me a fallar, para receber, ao cabo de um esforço inaudito, uma gargalhada brutal. Deos sabe quanto custa affazer-me á solidão absoluta. A solidão, é verdade, devasta o espirito, porque obriga á representação interior, dando-lhe um relêvo maior do que a realidade. Serão utopias tudo quanto tenho na cabeça? É uma lei natural. Ha na vida intellectual dois periodos, um de creação, outro de realisação. Hoje concebo um ideal que não posso determinar; porque ha de vir tempo em que saberei sómente dar fórma ao que senti. Convem não rir desapiedadamente de todas as theorias da mente febril da mocidade, porque ao approximar-se a edade esteril da força, quem ha de realisar o que não ideou? Bem sei que um grande poeta disse antes de mim: «Uma grande vida, é um pensamento da mocidade realisado na edade madura.» Em tudo isto vejo uma força desoladora no homem, que o domina em tudo, e era pela analyse d'ella que poderiamos entrar na essencia dos actos de sua vida – é o egoismo. Quando o homem se vê compellido a reconhecer uma superioridade no seu semelhante, fórma d'elle um semi-deus, porque, então já não é outro homem que o sobrepuja. Christo é uma idéa transmittida ás gerações, que ellas concretisaram em um nome para comprehendel-a. E depois, porque um homem egual a nós a manifestava, o egoismo salva-se fazendo-o – filho de Deos. Arranca-se a Illiada das mãos de Homero, porque o orgulho do homem não consente que o homem o exceda. Vico representa na sua hypercritica a humanidade. Perguntamos, quem inventou a alavanca antes de Archimedes demonstrar a sua lei? quem descobriu o parafuso, a serra, bases de toda a mechanica? O egoismo occultou quanto pôde o segredo; apenas a mythologia responde com uma divindade allegorica, um Saturno, Perdice, Pan e Triptolemo. —
O pobre rapaz falava de um modo precipitado, convulsivo, como se lhe faltasse o ár. A escuridão da noite não deixava lêr-lhe no rosto a volubilidade da expressão. De repente, parou á porta de um casebre velho, situado em uma viella estreita e infecta. Pediu-me para subir. Eu não podia resistir-lhe; cada palavra vibrava-me cá dentro como um arranco. Fomos tacteando nas sombras, por um caracol de escadas carcomidas, que nos faltavam aos pés. Ia-se-me esclarecendo o mysterio d'aquella existencia. Por fim chegamos a um quarto pequenino e baixo, com um ár mephitico, saturado de fumo de tabaco. Elle acendeu uma vella de cebo roida dos ratos, que tinha presa no gargallo de uma garrafa; a enxerga com uma manta embrulhada achava-se a lastro. A miseria arripiava-me. O pobre rapaz deitou-se sem forças; vi-lhe então, á luz mortiça, uma pallidez cadaverica. Tive medo do seu silencio. Elle estava envergonhado de tanta indigencia, e procurava rir-se, ridicularisando-a:
– Não extranhe vêr-me n'esta trapeira; ha uma analogia entre ella e a minha cabeça, onde as idéas refervem em tropel confuso, e se conflagram e se destroem. Estas teias de aranha são ás vezes a minha distracção nas horas de enfado; divirto-me como o Mascara-de-ferro, como Spinosa, Magliabechi e Silvio Pellico. É em que me pareço com os grandes homens. Deixemos isto; conversemos a serio diante de quem não sabe rir-se de mim. Eu tambem tenho pensado na organisação de uma sociedade perfeita, como Platão e Cicero, Campanella, Thomaz Morus e Fenelon; mas só encontro essa perfeição no momento em que os vinculos do direito que prendem as nossas relações sociaes, e os mysterios e terrores que as religiões incutem, fossem excluidos pelo desenvolvimento completo da idéa do Bello; quando deixassemos de praticar uma acção, que vae contra as maximas do direito ou da religião, não por ser injusta ou immoral, mas