Tudo se desmorona. Sheena Kamal

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Tudo se desmorona - Sheena Kamal HARPERCOLLINS PORTUGAL

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      Leo levou tudo menos os livros. Se soubesse como Seb precisava deles, também os teria levado. Porém, não o fez, portanto, continuam aqui e, quando Seb se sente bem, enumeramo-los enquanto revemos as suas memórias. Fala e escreve enquanto eu ouço e tomo as minhas próprias notas ou escrevo quando ele não tem forças. Só trabalhamos nesta sala e deixamos toda a nossa bagagem extra à porta. Todos precisam de um lugar sagrado e este pertence aos três. Protegidos pelos livros maltratados que significaram alguma coisa para ele ao longo da sua vida.

      Eu não sou uma académica, mas os livros de Seb foram uma revelação para mim. Nada me comove como a poesia de Césaire, o escritor político das colónias francesas que falava da rejeição das pessoas a desafiar a sua visão do mundo. Era fácil separar as ideias, como assustar uma mosca.

      Na semana passada, antes de chegar o fumo dos incêndios do norte, levei a Whisper às rochas que dão para o oceano. Tínhamos tempo para matar enquanto Seb estava no hospital. Ficámos lá durante um bom bocado, o suficiente para ver o ciclo da vida à nossa frente. Mesmo por cima da superfície da água, no fundo do meu campo de visão, duas aves de rapina rodeavam um ponto concreto da água. De vez em quando, uma das duas mergulhava. Chamavam-se uma à outra e, quanto mais tempo passava, mais fechados eram os círculos. Eu percebia o que viam. Que a criatura da água, um pato desorientado, talvez estivesse cada vez mais cansada. Os seus reflexos eram cada vez mais lentos. No fim, aconteceria o inevitável.

      Recordou-me que o desastre se precipita e ataca quando uma criatura está mais fraca.

      Sozinha, com duas bocas famintas para alimentar e com a certeza de que o amor de uma mulher é algo poderoso, mas não tão poderoso como o vazio que deixa quando se vai embora. Até aparecer esse veterano de guerra, cujo nome nem sequer me ocorreu perguntar, pensava que o meu pai simplesmente não tinha conseguido aguentar a pressão.

      No entanto, agora, penso em Césaire e uma suspeita aloja-se na minha mente. Como bem disse, a ideia é como uma mosca incómoda. A zumbir-me no ouvido. Diz-me que há algo mais por trás da morte do meu pai do que me tinha permitido pensar. Altera a minha visão do mundo.

      7

      Brazuca vê-se imediatamente obrigado a reconsiderar os seus preconceitos pelas mulheres sustentadas quando entra no apartamento de Clementine. Não é o bordel que imaginara. Não tem nada de frívolo, para além do preço de viver num apartamento com vista para English Bay. Tem um ambiente acolhedor e caloroso e, embora os móveis não sejam baratos, também não são ostentosos. Alguém com muito bom gosto transformou este lugar num lar.

      A luz suave da tarde penetra na sala, onde Brazuca encontra uma fotografia emoldurada de Lam a rodear Clementine com os braços. Estão a observar as águas de Deep Cove, a norte de Vancouver, onde se juntam Burrard Inlet e o fiorde de Indian Arm. Brazuca nunca viu Lam tão feliz como nessa fotografia, sorrindo contra o cabelo de Clementine.

      Ouve um barulho no interior do apartamento. Afasta-se da fotografia, passa à frente da cozinha elegante e para à porta do quarto.

      — Está aí alguém?

      Uma jovem chinesa olha para ele, afasta uma madeixa de cabelo da testa e apanha-a num coque descuidado. Tem um fato de treino com o logótipo da Universidade de British Columbia e está sentada no chão rodeada de montes de roupa, sapatos e malas, com aspeto de estar totalmente perdida.

      O que lhe chama a atenção é que não parece especialmente surpreendida por ver um desconhecido ali. Também não parece preocupada com a sua segurança. Entreolham-se durante uns segundos e, depois, a mulher aponta para as malas. «Sabes quanto custa normalmente uma mala de marca?», pergunta, finalmente. «Claro que não sabes. Imagino pela tua forma de vestir. Não és um dos namorados habituais da minha irmã.»

      Brazuca acha graça, apesar de tudo. Cruza os braços e apoia-se na ombreira da porta.

      — Milhares de dólares — continua ela. — Deve haver malas no valor de cinquenta mil dólares só nesta divisão, pelo menos. O que vou fazer com estas coisas?

      — Devíamos unir os nossos recursos e vendê-las juntos. Ambos seríamos ricos.

      — Estas etiquetas vendem-se sozinhas. E não tenho a certeza com o que poderias contribuir, sejas quem fores.

      — Jon Brazuca — apresenta-se e decide não estender a mão. O olhar desconfiado da mulher indica que deve ficar onde está. — Um amigo da Clementine pediu-me para passar por cá.

      A mulher fica a olhar para ele e ele sente-se tentado a recuar ao ver a raiva súbita na sua expressão. Levanta-se.

      — Referes-te ao Bernard Lam? Ela morre de overdose e ele fica furioso, não é? O seu brinquedo morreu.

      — Não acho que a Clementine fosse um brinquedo para ele.

      — Vamos deixar uma coisa clara — replica a mulher, apontando-lhe para o peito com um dedo. — Não sei porque queria que a chamassem por esse nome horrível de stripper, mas o seu nome era Cecily Chan. Estudava Literatura Inglesa na universidade antes de parar para ser modelo. Era uma pessoa, com uma família que a amava.

      Brazuca levanta uma mão em gesto de paz. Tinha uma tia-avó chamada Cecily e entende que uma mulher de menos de quarenta anos prefira que lhe chamem de outro modo.

      — Está bem, já compreendo. Amavam-na. Não disse que não era assim.

      Ela fica séria. Dá um pontapé numa mala que poderia valer mais do que ele ganha num mês.

      — Lamento muito. Estou fora de mim. Não suporto isto. A minha irmã morreu e a única coisa que deixou para trás foi um punhado de merda muito caro que tenho de administrar agora.

      Vai à cozinha e liga o fervedor de água. Poucos minutos mais tarde, vai atrás dele com uma caixa de cartão cheia de malas de marca e deixa-a cair junto de uma pilha de caixas que já estão na sala. Depois, tira um saquinho de chá de um armário a que mal chega. Juntos, fazem uma chaleira de chá de jasmim muito aromático e sentam-se à mesa da sala de jantar que dá para a baía.

      A divisão vai escurecendo enquanto o sol se põe por cima da água, mas nenhum dos dois se incomoda em fechar as cortinas ou acender as luzes. Às vezes, Brazuca recorda como esta cidade é bonita. Porque escolheu viver aqui. Está tão perdido nos seus pensamentos que demora uns segundos a perceber que a mulher o observa fixamente. Já deve estar assim há um bom bocado.

      — Sou a Grace — apresenta-se.

      — Grace. Tens alguém que possa vir ajudar-te com as coisas da Cecily?

      — Não, a verdade é que não.

      — Os teus pais, talvez?

      Abana a cabeça.

      — Como se alguma vez fossem pôr um pé aqui. Os nossos pais e ela tiveram uma discussão há alguns anos. Ela disse que desejaria que estivessem mortos. Disseram-lhe que poderiam estar mortos para ela, se fosse o que queria. Depois, foi-se embora e nunca mais voltaram a falar. Recusaram-se a vir à missa quando morreu porque esse imbecil a pagou. Só apareceram alguns primos e eu. No fim, não acho que a minha irmã tivesse muitos amigos.

      Brazuca observa as caixas de cartão empilhadas na sala.

      —

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