Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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Aveiro; com os seus óculos redondos, junto à janela, empurrando a agulha, morria-se por contar histórias do convento: as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronúncia minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Távoras; e a legenda de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: — Augusto! Augusto!

      Amélia ouvia aquelas histórias, encantada. Gostava então tanto de festas de igreja e da convivência dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito bonita, com um veuzinho muito branco". A mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amélia chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, à tarde, encontrava-o sempre a palestrar com a mãe, na sala, de batina desabotoada, deixando ver o longo colete de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a tabuada.

      À noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o cônego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de pássaro, com óculos azuis, que fora frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãe, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua viola. Mas às nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ela via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silêncio, e o capitão, repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.

      Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipáticos: sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e moles, de unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ela sentia o seu hálito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o cônego Cruz, magro, com o cabelo todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho, cumprimentando com a mão sobre o peito, e uma voz suave cheia de ss. Já então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer "bagatela", falavam-lhe sempre dos castigos do Céu; de tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe dar o sofrimento e a morte, e que é necessário abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os padres. Por isso, se às vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitência no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou a fizesse cair na escada.

      Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de música. A mãe tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador. Amélia costumava cantarolar pela casa; e a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da mãe diziam-lhe:

      — Tu tens aí um piano, por que não mandas ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha que lhe pode servir de muito!

      O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé de Évora, extremamente infeliz: a filha única, muito linda, fugira-lhe com um alferes para Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da Praça, que ia muito à capital, vira-a descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade num olho, com um marinheiro inglês. O velho caíra em grande melancolia e grande miséria; e por piedade tinham-lhe dado um emprego no cartório da câmara eclesiástica. Era uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer até os ombros os seus cabelos brancos e finos; os olhos, cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia muito transido, no seu capote cor de vinho que só lhe chegava à cintura e que tinha uma gola de astracã. Chamavam-lhe o Tio Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitário. Amélia um dia tinha-lhe chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.

      O velho pôs-se a sorrir:

      — Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem cegonha!

      Era então no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a áspera estação oprimia os pobres. Viam-se naquele ano famílias esfomeadas indo à câmara pedir pão. O Tio Cegonha vinha sempre ao meio-dia dar a lição; o seu guarda-chuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado, e não o deixava escrever no cartório.

      — Prendem-se-me os dedos, dizia tristemente.

      Mas quando a S. Joaneira lhe pagou o primeiro mês das lições, o velho apareceu muito contente, com umas grossas luvas de lã.

      — Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amélia.

      — Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de lã. Deus a abençoe, minha menina, Deus a abençoe!

      E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lágrimas. Amélia tomara-se a "sua rica amiguinha". Já lhe fazia confidências: contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glórias na Sé de Évora, quando diante do senhor arcebispo, vistoso na sua sobrepeliz escarlate, acompanhava o Lausperene.

      Amélia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe desse umas meias de lã.

      — Ora essa! para quê? para ti? disse ele com o seu riso grosso.

      — Para mim, sim, senhor.

      — Deixe falar, senhor chantre! disse a S. Joaneira. Olha a idéia!

      — Não deixe falar, não! dê, sim?!

      Lançou-lhe os braços ao pescoço; fez-lhe olhinhos doces.

      — Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! há-de ser o diabo!... Pois sim, aí tens. — E deu-lhe dois pintos para umas meias de lã.

      No dia seguinte tinha-os ela embrulhados num papel, que dizia por fora em letras garrafais: Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discípula.

      Uma manhã, depois, viu-o mais amarelo, mais chupado:

      — Ó Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartório?

      O velho sorriu-se:

      — Ora, minha rica menina, quanto me hão-de dar? uma bagatela.

      Quatro vinténs por dia. Mas o Sr. Neto faz-me algum bem...

      — E chegam-lhe quatro vinténs?

      — Ora! como hão-de chegar?

      Sentiram-se os passos da mãe; e Amélia, retomando gravemente a atitude de lição, começou a solfejar alto, com um ar profundo.

      E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãe a dar de almoçar e de jantar ao Tio Cegonha nos dias de lição. Assim se estabeleceu entre ela e o velho uma grande intimidade. E o pobre Tio Cegonha, saindo do seu frio isolamento, acolhia-se àquela amizade inesperada, como a um conchego tépido. Encontrava nela o elemento feminino que amam os velhos, com as carícias, as suavidades de voz, as delicadezas de enfermeira; achava nela a única admiradora da sua música; e via-a sempre atenta às histórias do seu tempo, às recordações da velha Sé de Évora que ele amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando se falava de procissões, ou de festas de igreja:

      — Para isso Évora! em Évora é que é!

      Amélia aplicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada

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