Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo Romancistas Essenciais

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que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento e menos feito que o Teodósio, o qual, posto que mais entrado em anos, sabia dar, quando queria, à cara romba e de cor fula uma aparência de bestial simplicidade em que só uma vista perspicaz, e acostumada a ler no rosto as idéias e os sentimentos íntimos, poderia descobrir a mais refinada hipocrisia.

      — Entendo que é bem lembrado o que dizes, Cabeleira — acrescentou o cabra levantando-se; corro sem demora a armar laço para apanhar o passarinho; ainda que, a bem dizer, já cá tenho o meu plano que há de cair tão certinho como S. João a vinte e quatro.

      — E onde depois nos encontraremos? perguntou Joaquim vendo que o Teodósio se achava já de marcha para a vila.

      — Não será o mais custoso. Esperarei por vocês debaixo da ingazeira da ponte.

      Teodósio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéu de palha à cabeça para que o vento não lho arrebatasse, e desapareceu em rápido marche-marche, por detrás dos matos que naquele tempo enchiam ainda em sua maior parte a zona onde hoje se ostenta com suas graciosas habitações entre risonhos verdores a Passagem da Madalena.

      Antes que o sol descesse ao horizonte e as trevas envolvessem de todo a natureza, meteram-se o pai e o filho pelo caminho onde um quarto de hora atrás havia desaparecido o outro companheiro, alma do negócio e principal responsável pelos perigos a que todos eles iam expor talvez a própria vida.

      A solidão estava sombria e triste.

      Contavam-se então as casas por aquelas paragens. Em torno delas o deserto começava a aumentar antes de pôr-se o sol. Uma lei cruel, a lei da necessidade, obrigava os moradores a trancar-se cedo por bem da própria conservação.

      Os roubos e assassinatos reproduziam-se com incrível frequência nos caminhos e até nas beiradas dos sítios.

      Sólidas habitações não tinham em muitos casos assegurado às famílias inelutável obstáculo ao assalto dos malfeitores. Triste época em que o despotismo tudo podia contra os cidadãos pacíficos e bons, nada contra a parte cancerosa da sociedade!

      A vila estava em festa. Foi no primeiro domingo de dezembro de 1773. Era governador Manuel da Cunha de Meneses, depois Conde de Lumiar, jovem fidalgo a quem a igreja pernambucana deve distintos benefícios.

      Com a data do 1º daquele mês tinha ele feito publicar um bando pelo qual ordenara aos moradores que pusessem luminárias em demonstração da alegria que causara à nação portuguesa a abolição dos jesuítas em todo o orbe cristão, pelo santo padre Clemente XIV.

      No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete de Setembro que liga o bairro do Recife ao de Santo Antônio, via-se nessa época uma ponte de madeira, a qual fora mandada construir em 1737 sobre os sólidos pilares de pedra e cal da primitiva ponte, obra de Maurício de Nassau, por Henrique Luís Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais honrada e benemérita memória deixaram de si em Pernambuco.

      Era uma rica construção, nada menos do que uma rua suspensa sobre as águas do Rio Capibaribe, que passa aí reunido ao Beberibe depois de um curso de oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras e ao pé de pitorescas vilas, povoações e arrabaldes. De um e outro lado, exceto na parte central, que fora guarnecida de bancos para recreio do público, viam-se pequenos armazéns de taipa de sebe em que se vendiam miudezas e ferragens, que logo depois de prontos acharam alugadores, começaram a render a quantia de oitocentos mil-réis anuais, a qual no começo do século corrente se havia elevado à de quatro contos de réis. Com a fundação das casinhas sobreditas teve por fim o governador de criar uma fonte de rendas destinada à conservação das pontes da província quase todas nesse tempo em deplorável ruína. Destas obras com que dotou Pernambuco o gênio desse ilustre governador, não resta hoje o menor vestígio. Tudo desapareceu, tudo, até as arcadas holandesas que ainda alcancei, O monumento das idades é mais depressa destruído pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, com ser voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude.

      À boca da noite os dois aventureiros chegaram à parte do bairro da Boa Vista que é de nós conhecida por Ponte Velha. Raras casas mostravam-se então aí.

      A pouca distância para o sul do lugar onde existira a antiga ponte, nesse tempo já substituída pela da Boa Vista mandada construir por Henrique Luís a quem já nos referimos, levantava-se na margem uma ingazeira idosa e ramalhuda. Abrindo sobre o rio a copa à semelhança de chapéu-de-sol, formava esta árvore uma vasta camarinha que servia de porto de abrigo aos canoeiros quando o vento era teso, e as marés puxavam com velocidade. Debaixo desse teto protetor as águas corriam sempre mansas e bonançosas, e, sem primeiro descer ao pé do gigantesco vegetal, era difícil descobrir, pela densidão da sua folhagem, qualquer objeto ou ente que à sombra desta se acolhesse, ainda que estivesse o sol dardejando os seus luminosos raios. Fora este o ponto de reunião indicado por Teodósio aos companheiros.

      Dar com as primeiras casas iluminadas foi para os dois valentões motivo de justo espanto e receio. Não sabendo do regozijo oficial, e tendo bem presentes na consciência os crimes que haviam cometido, logo lhes pareceu que seriam descobertos ao clarão das luzes, não se demorando o clamor público, se assim acontecesse, a denunciá-lo às justiças de El-rei.

      Pelo voto de Cabeleira tinha-se verificado no mesmo instante a volta ao deserto. Mas Joaquim cuja temeridade não conhecia limites, desprezando os conselhos do filho sobre o qual exercitava a tirania do déspota primeiro que a autoridade do pai, foi fazer alto ao pé da ingazeira sobredita, tendo atravessado para chegar a este ponto as ruas mais públicas do nascente bairro da Boa Vista.

      Profundo silêncio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquele lado. As águas mal se moviam. Desceram os dois à margem a ajuntar-se ao Teodósio conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi iludida; não havia aí viva alma; unicamente se mostrou aos seus olhos um corpo negro, oscilando debaixo da folhagem, ao brando ondear das águas: era uma canoa que estava presa por uma corda ao tronco da ingazeira.

      Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação para os recém-chegados, um ruído que veio interromper o silêncio reinante na margem, obrigou-os a pôr-se em armas por precaução. A corda rapidamente encurtando atraiu sem auxílio visível a canoa à margem e um corpulento canoeiro, nu da cintura para cima, arrastando uma vara pela mão, soltou à frente dos malfeitores.

      — Sou eu, Cabeleira, sou eu.

      — Teodósio! Meteste-te em boas.

      — Eu estava escondido dentro da canoa para fazer um susto a vocês.

      — A bom diabo te encomendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo duas vezes — disse Cabeleira.

      — Não falemos mais nisso — acudiu Teodósio; celebraremos depois o caso. Para agora vamos ao que importa.

      — Que é que há?

      — Não me estão vendo em figura de canoeiro? Vamos a ela enquanto é tempo.

      Teodósio inclinou-se para. passar aos dois um segredo que em pouco tempo foi por ambos compreendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto em execução pelos três. O pai e o filho foram guardar as suas armas de fogo na canoa, e o cabra saltou novamente dentro dela e fez-se ao largo. Quem visse um instante depois o lenho resvalando na vasta superfície do rio à claridade dos astros da noite, juraria que nessa sombra fugitiva, nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da escuridão, não ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das águas e senhor dos meios de as vencer. Ia entretanto aí uma maldade muito mais considerável e perigosa,

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