Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo Romancistas Essenciais

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Você quer matar-me a Chica, José?

      — Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por isso anda aqui feito galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a todos estes papa-sirís dos Afogados.

      Assim dizendo, José montava-se literalmente na mameluca, e dava-lhe com os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira em uma das mãos, estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignóbil vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a ele também, não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil vezes pior.

      De repente José colheu o ímpeto, pôs-se de pé, e inquiriu de si para si:

      — E o meu cavalo?

      Correu incontinente à margem e soltou um longo assobio que atroou a solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos, finalmente atraídos pelos gritos, a princípio furiosos, depois rouquenhos, e por último cansados e quase imperceptíveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restitui-la à casa.

      — É o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que te vale é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse ele, nunca mais comias farinha.

      Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás cheios de peças de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da vila.

      — Boa tarde, seu Timóteo, disse ele, pondo-se em terra de um pulo e entrando sem-cerimônia na tasca. Dá-me notícias da Chica?

      — Você ainda vem falar nisso? redargüiu o vendeiro com semblante hipócrita, mas na realidade sobressaltado.

      — Por que não? Queria acabar de dar-lhe a lição que principiei na quarta-feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria ver se lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia.

      — Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania?

      — Ah! fez esta bestidade? Pois então, para celebrarmos o caso, bote aguardente e bebamos.

      Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José.

      — Beba primeiro; disse este.

      — Não, eu não bebo; respondeu o taverneiro.

      — Não bebe? Há de beber. E não se demore que tenho pressa. Atrás de mim vem alguém em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça por hoje.

      — Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está acabado. Veja se me obriga.

      A este rasgo de covarde arrogância que seria digna do riso e não despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos no colono:

      — Seu Timóteo, você vai errado. Olhe que eu não posso demorar-me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

      O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver sorvido alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu-o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago.

      Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha, pôs o cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece um raio na atmosfera.

      Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo. Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável na praça, tendo, para escapar-se, assassinado um caixeiro e deixado às portas da morte, com um sem-número de golpes, dois soldados que diligenciaram prendê-lo.

      Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não contava ele então dezesseis anos completos. Perpetrava, entretanto, destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais hábeis e audaciosos assassinos.

      Não obstante o modo por que o tratara desta vez o jovem Cabeleira, nunca Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não descobre a razão de tal segredo? O colono respeitava e temia o matuto. Por detrás, dizia àqueles de cuja fraqueza estava certo, que o José era uma oncinha que se estava criando e que era preciso, enquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha ele atenções e baixezas que bem denotavam os quilates do seu espírito.

      José cresceu, reformou, pôs-se de todo homem. Perdeu a cor terrena e pálida com que o vimos da primeira vez na taverna, e tornou-se robusto de corpo e bonito de feições. Cabelos compridos e anelados, que lhe caíam nos ombros, substituíram a penugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros anos.

      Timóteo fora testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a vila a taverna dos Afogados. Esta taverna passara a ser um como entreposto onde ele depositava o que roubava com o pai, e mais tarde, com o Teodósio que viera associar-se-lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achara-se assim em condições de acompanhar dia por dia as diferentes faces, os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis que se conhecem na carreira do crime.

      Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrara da companhia da Chica achava-se Timóteo nos seus quarenta e oito anos. Agora orçava pelos cinquenta e cinco. Tornara-se-lhe o cabelo branco; destendera-se-lhe o abdome, caíram-lhe um pouco as faces, sumiram-se-lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.

      Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam-se amigos, e até certo ponto apoiavam-se reciprocamente, havendo a muitos respeitos entre ambos perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses.

      As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue messe da noite, colhida às custas de sustos, sangue e morte, passou para os esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram todos a magistral façanha. Timóteo aplaudiu a. coragem do pai e do filho, e a finura e as mágicas do Teodósio.

      De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado à margem. Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam-se para o que desse e viesse.

      Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu digno conviva.

      Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos no auge do desespero. José dispôs-se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o consternado amigo.

      — Que diabo tens tu, Teodósio?

      — O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro!

      E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas azuladas em que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia ao céu de Itália.

      — O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote da canoa! disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve.

      —

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