Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo Romancistas Essenciais

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que me deixem ir embora. Em que os ofendi? Não os tenho respeitado sempre? Vosmecês não me conhecem? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguém, e que segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de Deus.

      Os dois matadores não estavam, ao menos naquele momento, para estas banalidades, e, cônscios de que urgia remover o óbice, saltaram sobre o crioulo, e apeando-o com violência, tomaram-lhe o animal, o qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira onde Joaquim julgou prudente recolhê-lo sem demora.

      Gabriel, que de pé e imóvel viu, com lágrimas nos olhos, desaparecer o seu único bem, reflexionou com pesar:

      — Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavalo, hem?

      — Ainda estás aí falando, negro? Quererás tomar-nos satisfações? replicou o Cabeleira voltando-se de chofre e fixando sobre o Gabriel a vista que chamejava como a de um chacal.

      — Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e outra atrás.

      A estas vozes o Cabeleira. não pôde mais conter-se, e de um só pulo fez-se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lajes que davam para o rio, tendo em uma das mãos uma faca nua, que refulgia ao raios do Sol.

      — Se quer brincar na ponta da faca, meu branco, a coisa é outra, e vosmecê encontra homem, — disse de cima.

      Ainda bem não tinha proferido estas expressões, quando a seus olhos brilhava também a faca de seu feroz contendor.

      Travou-se então entre eles um combate de gigantes que durou alguns minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lúgubre realce o deserto com sua profunda solidão.

      Os dois contendores eram habilíssimos em jogar a faca. Nunca se encontraram competidores mais dignos um do outro.

      As lâminas inimigas cruzavam-se a modo de impelidas por eletricidades iguais. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade característica dos matutos do Norte, máxime dos matutos de Pernambuco.

      Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da laje que, começando no estreito ângulo, ia morrer no Capibaribe por um declive quase abruto. Haviam-se avizinhado tanto do rio, que o ruído das águas já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos. Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem devorar.

      De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou assim entre dois inimigos capitais.

      — Ainda está vivo este negro, Zé Gomes? perguntou o mameluco ao filho.

      — É agora a sua derradeira, — respondeu este.

      — Com dois é impossível a um só se divertir, — tornou o negro, em cuja testa a alvura do suor contrastava com o negror da pele luzidia.

      José Gomes estava excitado ao último ponto e rolavam-lhe também pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão, apertou com o crioulo com toda a violência de que era capaz e que, como sempre, levou de vencida todas as resistências adversas. Gabriel, ou porque conhecesse que na realidade estava exposto a iminente perigo, ou porque julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça, deixou-se escorregar, quando menos esperava o inimigo, pela face oposta da laje, e foi cair dentro das águas que passavam ali rápidas e espumosas.

      Cabeleira correu, fora de si, após o fugitivo a fim de ver se o apanhava para mitigar no sangue dele a sede que o combate lhe acendera; mas antes que houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação de um tiro lhe anunciou que o temerário que lhe resistira acabava de pagar com a vida esta ousadia.

      Um momento depois o cadáver de Gabriel, entalado entre duas pedras que sobressaíam às águas no meio do canal, tingia-se com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, ainda fumegante, ao filho, que nunca pôde, como seu pai, matar curimãs a tiro nas águas turvas das enchentes.

      IV

      SEGUNDO as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira trouxe do seio materno um natural brando e um coração benévolo. A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer os seus belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma máquina de cometer crimes.

      Como é possível porém que se houvesse abastardado por tal forma a obra que saiu sem defeito das mãos da natureza? Como se compreende que uma organização sã se tivesse corrompido ao ponto de exceder, no desprezo da espécie humana, a fera cerval que se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma aberração, mas por uma lei da sua mesma animalidade?

      É que a mais forte das constituições, ou índoles, está sujeita a alterar-se sempre que as forças estranhas, que atuam sobre a existência, vêm a achar-se em luta com suas inclinações. Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações humanas — o temor, o conselho e o exemplo, que formam a base da educação, segunda natureza, porventura mais poderosa do que a primeira.

      No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião que a caracterizava. Em contraposição porém a este salutar elemento de edificação, do outro lado da criança achava-se Joaquim, não só naturalmente mau, mas também obcecado desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes.

      Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastada pela ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado a ser o primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência?

      A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva na formação dos costumes, quanto mais puro é o ambiente do meio social onde ela respira, e esclarecidos são os entes com quem coexiste. Colocada em um tal centro, a mulher não é somente uma providência, — sobretudo uma divindade. As suas forças elevam-se à altura das potências de primeira ordem, e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer que seja o mundo moral, não um caos, mas uma criação grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da estética cristã e às altas conquistas da civilização que possuímos. As suas qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares, tornam-se porém nulas ou são vencidas, sempre que entram em luta com a ignorância, com o vício, com o crime.

      Infelizmente para o Cabeleira, grande ânimo que poderia ter vindo a ser uma das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem servido antes a causas nobres que a reprovados interesses e cruéis necessidades, sua mãe dócil, posto que ignorante, de bonitas ações, posto que nascida de gente humilde, não só não pôde exercitar no infeliz lar a ação benéfica que à esposa e mãe reservou a natureza, mas até foi, como seu filho, uma vítima, não menos do que ele, digna de compaixão, um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia ligado o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse a carregar a cruz da pobreza.

      Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus conselhos e os péssimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai converteram seu coração, acessível, em começo,

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