Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco. August Nemo
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— Obrigado, meu amigo - disse Simão - aproveitarei os seus bons serviços quando me forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu. Se houver novidade, então veremos o que se há de fazer. Conto com vossemecê, e creia que tem em mim um amigo.
Mestre João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente a fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas necessárias, enquanto descarregava a arma, e a carregava de novo com uns zagalotes especiais, que ele denominava "amêndoas de pimpões".
Neste intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com meiguice a Simão Botelho:
— Então sempre é certo ir?
— Vou; para que não hei de ir?!
— Pois Nossa Senhora vá na sua companhia - tornou ela, saindo logo para esconder as lágrimas.
VI
As dez horas e meia da noite daquele dia, três vultos convergiram para o local, raro freqüentado, em que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em silêncio e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos dois:
— Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse aqui morto, as suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro, tenham o ouvido aplicado ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o encontrarem, de modo que os tiros sejam dados longe daqui.
— Mas... - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo, e hoje vem a pé?
— E verdade! - acrescentou o outro.
— Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a jeito de tiro, mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar Coutinho.
— Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem nos dar tempo?
— Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já Iho disse. Basta de palavreado. Vão esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.
Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três quarto depois da dez. O de Castro-d'Aire colocou o ouvido à porta, e retirou-se aceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.
Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a passo rápido. Não parou: foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja, que estava a duzentos passos de distância. Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava a junção da capela-mor, e sobre o qual caíram as sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu, mas eles disseram entre si, depois que ele desaparecera:
— E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!...
— Que fará a estas horas por aqui?!
— Eu sei!
— Não desconfias que ele entre nisto?
— Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila do nosso amo?
— Pois então que medo tens?
— Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou da forca...
— Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem sabe que o filho cá está...
— Assim será; mas não estou muito contente... Ele é homem dos diabos...
— Deixá-lo ser... Tanto entram as balas nele como noutro...
A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.
Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel da cavalgadura.
Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.
— Não há novidade - disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que já podia estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.
O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:
— És tu, João?
— Sou eu. Vim primeiro que tu.
Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.
— Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.
— Nas ocasiões é que se conhecem os homens - redargüiu o ferrador. - Ora vamos... não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.
— Tenho - disse Simão.
— Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do cavalo, que há de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa senhoria veio, e agora é andar com a cara para frente.
— Olhe que eu não tremo, mestre João! - disse o filho do corregedor.
— Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.
Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou alguns passos na rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.
Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto donde os visse.
Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como protegido pela defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu a réplica
— Faça o que eu lhe digo, fidal9o - disse ele com energia.
João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram defronte do quintal de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.
— Vamos sobre eles - disse o ferrador - que lá passaram para o adro da igreja; nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra; depois voltaremos para lhe guardar a