Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

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retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.

      Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:

      — Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...

      — Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.

      Entraram e Paulo irrompeu explodindo:

      — Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.

      A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:

      — Então, Paulo?

      — Falei ao Mamede.

      — E a polícia?

      — Qual polícia! - Atirou o chapéu para cima da mesa e sentou-se. Olhe, estou aqui que não posso comigo, já não tenho pernas e a senhora... nem como coisa. Eu posso morrer porque mamãe, apesar de tudo, ainda há de ter mais pena de Violante. É assim mesmo; - e amuou.

      — Mas que é isso agora? Que te fiz eu? Pois então não hei de pensar nela? - Já os seus olhos iam-se alagando e, dirigindo-se a Deus, a pobre velha pôs-se a dizer: Eu não mereço isto, meu Senhor! não mereço. Se eu havia de sofrer assim, por que não me levastes em lugar dele? Que fico fazendo no mundo, se os meus próprios filhos não me estimam? - Pôs-se de pé, grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.

      — Eu não mereço isto!

      Paulo teve um movimento frenético e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto. Dona Júlia, prostrada, ficou soluçando na sala, baixinho, para não incomodá-lo. Ele, porém, reaparecendo em mangas de camisa, esbravejou:

      — Que não se podia ter um segredo naquela casa que a senhora Dona Felícia não fosse logo bater boca na vizinhança. Vira-a de prosa com a tal Dona Lucinda, a maior enredadeira do quarteirão, com certeza a contar que Violante saíra, que ele fora à polícia, tudo, enfim.

      E, aos berros, para que a negra ouvisse na cozinha:

      — Pois fique sabendo que não quero trela com vizinho. Viva cada um em sua casa, com as suas mazelas. Que tem Dona Lucinda com o que se passa aqui? É melhor que cuide do filho, um vagabundo, que vive com a molecagem, a assaltar os bondes e a apedrejar quintais. Súcia!

      Dona Júlia, levantando a cabeça, exclamou:

      — E eu não quero ficar mais nesta casa, vou procurar um canto por aí. Aqui não fico mais. Não estou para essa gente vir perguntar por Violante. Eu sei... Se não a virem hoje começam logo com recadinhos: Que tem? por que não aparece? se está doente. Eu já disse à Felícia que respondesse a todos - que ela foi passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho. Só assim...

      — Pelo que ouço, a senhora entende que somos obrigados a dar satisfação da nossa vida à vizinhança... Por quê? Não faltava mais nada! Não é por meu gosto que a senhora conversa com essa gente. Quando nos mudamos para aqui eu lhe disse, lembre-se bem: nada de relações com vizinhos, vamos viver independentes: "Bom dia, Boa noite" e mais nada, senão começam os presentinhos, as visitas e os empréstimos de coisas e, um dia, metem-se-nos em casa. Dito e feito. Eu não posso andar à minha vontade porque, volta e meia, está aí gente à porta pedindo uma coisa e outra.

      — Mas que queres, Paulo? eu nem à janela chego. Quem fez amizade por aí foi Violante; eu estou sempre metida aqui dentro, cuidando do meu serviço. Elas vêm aí, que hei de fazer?

      — Pensam que não sei que me chamam de orgulhoso? Pois sou, sou mesmo! Não quero saber de amizades, vivo muito bem só. Está aí em que deram as amizades. Quer mudar-se?

      — Decerto. Não tenho cara para ficar aqui.

      — Nem eu. Mas eu sei que, onde quer que estejamos, há de ser sempre a mesma coisa: conversas, visitas...

      — Comigo!? - exclamou a velha espalmando a mão no peito.

      — Não, comigo...

      — Estás enganado. Eu, tenho o meu descanso, pouco me importo com o mundo.

      Houve um silêncio. Paulo passeava nervosamente pela sala, arrepelando os cabelos, arrependido de haver magoado a boa velha, que ainda os soluços agitavam como os últimos relâmpagos de uma tormenta. De repente, estacando, perguntou:

      — A senhora já almoçou?

      — Eu tenho lá fome...! Tomei uma xícara de café.

      Calaram-se.

      Comovido, apuado pelo remorso, Paulo sentou-se perto dela, e meigo, adormecendo a cólera que o agitara, pôs-se a falar da mudança:

      "Que não podiam continuar naquela casa, mesmo por ela, que havia de estar constantemente a lembrar-se de Violante."

      — Ah! meu filho, ainda me parece um sonho. Há pouco estava lá dentro na sala de jantar quando ouvi rumor no quarto dela. E estremeci toda, fiquei fria, gelada e deu-me uma pancada no coração, tão forte que pensei que ia morrer. Fui devagarinho e espiei. - Suspirou e calou-se, dizendo depois duma pausa angustiosa: Como é que uma filha faz uma coisa assim? E não há lei?! Pois então um malvado seduz uma moça, atira-a na desgraça e fica muito bem sem um castigo? - Elevou então os olhos e, de mãos postas, erguendo-se tremulamente, tomou Deus por juiz: Ah! mas quem faz paga... Deus é grande! Deus não dorme. Só se eu não a criei nestes peitos com o meu sangue.

      Paulo passeava sem dizer palavra, enternecido com aquelas doloridas queixas.

      Um sino dobrou lentamente e Dona Júlia, agarrando-se aos braços da cadeira, foi derreando o corpo, ajoelhou-se e ficou a rezar. Nova badalada rolou e um galo cantou no fundo do quintal.

      Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d'alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.

      O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando - só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.

      Paulo pisava de leve como para não interromper a oração da mãe, mas bateram à porta apressadamente. Dona Júlia ergueu-se e saiu em pontas de pés, ele meteu-se no quarto, revoltado e, quando Felícia acudiu para ver quem era, entreabriu a porta e ficou à escuta, retorcendo nervosamente o buço. Era um pequeno da vizinhança que pedia o jornal emprestado.

      Felícia fechou a janela enquanto ia buscar a folha e, quando tornou, disse amuadamente: "que tinha ido passar uns dias fora, no Engenho Novo, com o padrinho."

      Tratava-se

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