Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

Чтение книги онлайн.

Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo страница 11

Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

Скачать книгу

pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:

      — Por aqui?

      — É verdade.

      — Os seus, bons?

      — Graças a Deus. E os seus?

      — Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.

      Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.

      Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.

      Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.

      Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.

      Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.

      Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.

      Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.

      Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes. Paulo atirou-lhe uma moeda.

      Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.

      IV

      A estalagem em que morava o Mamede, antiga chácara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um imenso e rumoroso viveiro, alveolado de renques de casotas baixas, de porta e janela, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado e seco, em outras caprichosamente plantado até a cerca de ripas que o limitava.

      Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro comum, gramado em quadros ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.

      No aclive, encostado à barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau-a-pique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varais. Tinas jaziam acanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.

      Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavam-se-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.

      Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.

      Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.

      Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.

      Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.

      — É ali.

      Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:

      — Ó de casa!

      — Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:

      — Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?

      Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirá-lo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho; entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.

      Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.

      — Vai um golinho de café? - Paulo aceitou. - Isto é que é... Sempre o mesmo, hem, nhozinho? Bom como o velho. - E, atirando o corpo para trás, com um gesto largo do braço, descaído e lépido: Em casa de pobre não há outra coisa. Mas é bom! - afirmou com seriedade cômica. - Um instantinho.

      Correu um leve reposteiro de chita escura, de ramagens, e desapareceu, gingando.

      Paulo lançou os olhos à sala. Estreita, com uma janela e a porta à frente, duas portas ao fundo, encobertas pelos reposteiros de chita que o vento tufava; uma mesa de pinho, a cômoda com imagens de gesso e quinquilharias, quatro cadeiras e um banco com assento de couro. Nas paredes: cromos de antigas folhinhas, gravuras recortadas e uma cópia da Batalha de Avaí. A um canto, um feixe de bengalões mosqueados.

      Na janela, empanada por uma cortina de filó, dois vasos de barro com malvas e,

Скачать книгу