Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

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      — Ah! - E Paulo foi dizendo a altura da irmã, a graça do seu corpo flexível, a cor alambreada da sua pele flexível, a abundância ondulante dos seus cabelos negros, o carmim dos seus lábios polpudos, o negror das suas pupilas árdegas, a alvura dos seus pequeninos dentes, a languidez do seu andar preguiçoso, o encanto da sua voz dengosa.

      — Bem: vou mandar ver. O senhor não procurou o delegado da sua circunscrição?

      — Não, senhor; vim diretamente aqui. Mas se o sr. doutor acha necessário...

      Sem responder, o delegado arrepanhou o robe de chambre e, com o papel na mão, pôs-se de pé.

      — Tem pai?

      — Não, senhor: morreu - era major de cavalaria.

      — Pois sim, vou mandar ver; - e foi-se para a ponta do fundo, lento e derreado, tossindo.

      Paulo ficou um momento hesitante, a olhar; ouviu o estralar de um móvel e um resmungo na saleta onde entrara o delegado. Já com o chapéu na mão esteve ainda indeciso, como à espera de uma resposta, até que, desanimado, dirigiu-se à ponta, correu o reposteiro e saiu. "Vou mandar ver!..." E, repetindo as palavras do delegado, desceu as escadas, indignado e desesperançado.

      Chovia ainda. Carroças desciam a rua, aos solavancos, atroando o silêncio. Parado, com o olhar disperso, numa inércia acabrunhada, como esquecido do seu próprio ser, ficou um instante à porta, até que a frase indiferente do delegado repontou: "Vou mandar ver..." Teve um risinho irônico; voltou-se para a escada, com ódio, repetindo entredentes: "Vou mandar ver..." Impetuosamente abriu d'estalo o guarda-chuva, e ia, de novo, lançar-se a caminho, quando viu um tílburi, que se aproximava vagaroso, ao passo tardo de um sendeiro esgrouviado, pobre besta noctâmbula, velha e exausta, que só àquelas horas ermas, de trevas, saía com a ossada e o mormo, para a tarefa que lhe valia o pasto e o abrigo na cocheira, até que, de todo inútil, fosse tocada pelos moços e achasse um canto para morrer, ao claro sol, sob o azul macio do céu. O cocheiro perguntou, em voz pigarrenta: "Para onde?" e Paulo, deixando-se cair na almofada, deu-lhe o endereço.

      Encolhido, sentindo a fria umidade da roupa, ia pensando na irmã: "Talvez a encontrasse em casa, arrependida implorando o perdão". Via-a de joelhos, banhada em lágrimas, agitada pelos soluços e a mãe a afagá-la, numa grande e transbordante felicidade. Mas o cocheiro interrompeu-lhe o sonho:

      — Que tempozinho! E anda por ai moléstia que é um horror!

      — É verdade.

      — A bexiga então... O senhor não imagina. Lá na minha rua dois casos. Ontem foi-se um companheiro meu, deixando mulher e dois filhos. Um rapaz fonte que fazia gosto - vendia saúde. Agora fica praí, sem amparo, a pobre rapariga, com dois pequenos agarrados à saia. Mas que quer o senhor? um homem precisa, não pode estar a escolher. Ele apanhou um freguês para Catumbi e lá esteve com o carro à espera, mais de uma hora, perto duma vala. Até expirar não falou de outra coisa "que apanhara a moléstia naquela viagem. Que se não fosse o demônio da vala..." Mas nós temos de ir a toda a parte, para isso é que saímos.

      Atirou uma chicotada à anca ossuda da alimária, que arrancou a trote fazendo ranger o tílburi, tão velho como ela, ameaçando desfazer-se em caminho, e continuou, inclinando-se, de vez em vez, para atirar à rua grossas cusparadas.

      — Também não há quem cuide da cidade. Veja o senhor isto: não há molas que resistam.

      Uma das rodas ficara entalada numa fossa, o animal ladeava esforçando-se, e o cocheiro, a fustigá-lo, cacarejava sacudindo as rédeas. Safando o veículo, o sendeiro partiu desabrido, apesar dos psius! do cocheiro, que retesava as rédeas.

      — Ainda tem fogo. Aqui tem o senhor um bicho que trabalha há doze anos e não é qualquer que lida com ele. Tem ronha! Eu mesmo, às vezes, vejo-me atrapalhado.

      Paulo não lhe dava atenção, preocupado, como estava, com o caso da irmã. Mas como fora aquilo? A força?! Não! Violante não era uma criança que se deixasse arrebatar por um desconhecido. Só? Também não! Para onde? E se houvesse saído para casar? Mas qual! Tivesse o tipo tal idéia, certamente não a aviltaria em uma fuga, de mais a mais, sem motivo. Fora contrariada? Não. Namorava, mas dizer que tinha amor a este ou àquele, isso não. Devia ser algum desses bilontras - quantos conhecia ele! - que exploram raparigas, lançando-as no vício. para viverem à custa da sua degradação. Um ímpeto de furor sacudiu-o: encheram-se-lhe os olhos d'água. O cocheiro bocejou alto, atirando uma relhada ao flanco do animal que trotava. Subiam a Rua do Dr. João Ricardo quando um silvo agudo cortou o silêncio da noite fria.

      — Já o expresso!? - exclamou Paulo, em sobressalto. - Que horas serão?

      — Deve andar perto das quatro.

      — Como?! Já!

      — Sim, senhor: não pode faltar muito.

      Ao voltar o tílburi a rua, Paulo sentiu esvaziar-se-lhe repentinamente o coração como se todo o sangue se houvesse escoado. Lá estava a luz sinistra filtrando-se através das persianas. Era o sinal da vigília.

      — Ali! disse.

      O tílburi parou à porta e logo a janela abriu-se e a negra apareceu. com a trunfa muito branca e disse para dentro: "É nhonhô..." Ele compreendeu que ainda esperavam a desaparecida; pagou e desceu. O tílburi deu volta e foi-se lentamente, rangendo, como a desmantelar-se.

      — Nada? perguntou à negra que lhe abria a ponta.

      — Não, senhor.

      Vindo da noite fria, sentiu uma impressão tépida, agradável, naquela sala iluminada e lúgubre. A negra pôs-se a fechar a porta correndo o ferrolho e ele caminhou direito à sala de jantar, desanimado, receoso, com o coração aos baques. Que havia de dizer à mãe que o esperava ansiosa, confiada na sagacidade da polícia?

      Para os simples a polícia é ainda um conforto porque só a vêem através das lendas. A polícia tudo conhece e porque, raro em raro, descobre um criminoso, entende a pobre gente que ninguém lhe escapa, tanto o assassino como o ladrão, o que mata como o que furta. A pobre senhora acariciava a esperança de que, antes do nascer do sol, ali teria a filha, salva e pura. Paulo bem a conhecia e receava desenganá-la. Antes de chegar à sala ouviu-lhe a voz gemente:

      — Então, meu filho?

      Não respondeu e, quando a viu sentada em uma cadeira de vime, junto à mesa onde tinha um dos braços estirado, abatida, com os olhos roxos de pranto, fitou-a mudo deixando-se cair em uma cadeira.

      — Nada...

      — Nada?! Nem notícias, Paulo?

      Esteve um instante a fitá-lo, desatando, depois, a chorar: um choro humilde, fraco, muito infeliz, de criança, com a cabeça pendida sobre o colo farto que estremecia sacudido pelos soluços.

      Paulo, comovido, com os olhos marejados, quis dizer algumas palavras de consolação - pôs-se de pé, mas diante da mãe, cujo corpo tremia nos entrebuchos do pranto, emudeceu sem sentir as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. Lentamente, passando a mão pelos cabelos molhados, foi caminhando cabisbaixo até a porta do quarto de Violante.

      Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa de fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa palmatória de cristal, havia um coto de vela; acendeu-o.

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