Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

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ficou a olhar como se estivesse diante dum cadáver.

      A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas, tinha uma ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de crivo, estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado e odorante.

      Ela estivera ali deitada, e planejara a fuga, atenta aos rumores da casa e às pancadas do relógio. Dali saíra, pé ante pé, atravessando a sala, passando sorrateiramente junto ao quarto em que dormia a mãe e fora-se pelo corredor. Abrira a ponta, ganhara a rua e partira sem uma lágrima, talvez sem o mais leve remorso.

      Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências, os vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do pai, fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros retratos de moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera pelo Natal com amêndoas.

      No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a ponta, que rangeu, emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos escorridos nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as saias, sentindo um perfume morno e sensual de essência e de carne - faltava a de seda preta, a mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele lhe havia dado meses antes, no dia em que ela completara dezoito anos, e que a mãe contara e cosera, cantarolando as suas modinhas tristes.

      Não dizia palavra, apenas o seu rosto contraia-se em crispações nervosas e as pemas tremiam-lhe. Fechou o móvel, sentou-se na cama, com os braços caídos, e viu-se ao espelho do lavatório, demudado, os cabelos desfeitos, os olhos fundos e demorou o olhar, mirando-se. Pouco a pouco, porém, foi-se-lhe a imagem desvanecendo e uma sombra passou-lhe pelos olhos; agitou-se, e logo reviu-se, como em ressurgimento,

      Fora, os soluços de Dona Júlia sucediam-se, a mais e mais angustiosos. "Que lhe hei de eu dizer, meu Deus!" Não lhe acudia uma palavra, apertava a cabeça entre as mãos, como a espremê-la, trincava os lábios e, de novo, cravava os olhos no espelho, revendo-se. E as jóias? Puxou a gaveta da cômoda - lá estava a caixa de veludo em que ela costumava guardá-1as - abriu-a: vazia! Meneou com a cabeça, contemplando o fundo de cetim negro, onde brilhavam letras douradas, entre medalhas. Fechou-a e depô-la de leve na gaveta, sobre umas gazes tênues. Afastando-se, sentiu que alguma coisa lhe fugia diante dos pés: baixou os olhos - era uma velha botina acalcanhada com o cano engelhado. Perto do lavatório jazia a parelha. Eram as botinas com que ela andava em casa.

      Ficou a contemplá-las. Ah! Violante. Em súbito furor, atirou um murro à fronte rosnando: "Eu devia ter sido mais severo, mas mamãe... Encolheu os ombros e, como se lhe houvesse ocorrido uma idéia salvadora, levantou-se às pressas, abriu a gaveta do lavatório, mas ficou inerte, a olhar uma infinidade de selos esparsos. Fora ele que os arranjara com o Prates dos telegramas para a coleção que ela andava a fazer; estavam todos ali, em desordem, colados a pedaços de jornais, em fragmentos de envelopes carimbados. E cartas? Ela devia tê-las. Então, numa fúria, como um ladrão que tivesse pressa, receoso de ser surpreendido, pôs-se a abrir e a fechar gavetas que, às vezes, emperravam e, nervosamente, revolvia retalhos, papéis finos amarfanhados, ferros de frisar, cromos, grampos, alfinetes. Mas a voz lamentosa de Dona Júlia chamou-o:

      — Paulo!

      Rápido, atarantado, lutou para fechar a gaveta do lavatório, que resistia, empenada, meteu-lhe o peito e, com um impulso fonte, com o qual tremeram, tilintando, a louça e os cristais, levou-a ao fundo, saindo imediatamente. Dona Júlia limpava os olhos.

      — Paulo! repetiu.

      — Que é, mamãe?

      — E agora, meu filho, que havemos de fazer? - Ele pôs-se a torcer a toalha da mesa, sem dizer palavra. - Então essa gente da polícia não pode salvar uma moça?

      — Que hão de eles fazer, mamãe? Quem sabe lá! O delegado prometeu interessar-se por ela. Mas a senhora sabe que também não é assim, de uma hora para outra. Eles vão procurar.

      — E então?

      — Se encontrarem obrigarão o homem a casar, seja ele quem for. Não há outra coisa a fazer.

      — Ah! meu filho... E se for um ricaço? O dinheiro vence tudo. Os ricos governam e a minha pobre filha é que fica para aí, perdida. Tu conheces tanta gente, Paulo... Tem pena de mim. Tem pena de tua irmã.

      E a pobre velha, de mãos postas, soluçando, deixou-se cair de joelhos, a implorar.

      — Tem, Paulo, tem pena de mim. Que vergonha, meu filho! - e inclinou-se, com o rosto nas mãos, os cotovelos fincados na cadeira. Paulo levantou-a:

      — Eu farei tudo. mamãe; descanse. Nem conto com a polícia. Eu mesmo vou procurar Violante.

      — Sim, meu filho; ela é tua irmã! Nem sabe o passo que deu. - Nervosa, trêmula, arrastando-se para o quarto, pôs-se a dizer: Nem eu sei com que cara hei de aparecer amanhã a essa gente da vizinhança.

      Paulo já havia entrado no quarto quando ouviu o baque de um corpo. Precipitou-se, sobressaltado, e foi achar a mãe de joelhos, com a cabeça derreada, de mãos postas, exorando as imagens. Retrocedeu em pontas de pés, com um respeito sagrado e tornou ao seu quarto, na sala de visitas. Felícia, sentada no tapete, as pernas esticadas, os pés hirtos, ressonava. A porta estava entreaberta. Entrou, deu luz ao gás e, diante da estante atochada de livros, desabafou, colérico:

      — Cínica! E tudo por vaidade. É a mania do luxo. Uma moça pobre, que não pensava em outra coisa senão em vestir-se... E eu que morresse! E a pobre velha que se estafasse! Ah! coisa nojenta!

      Encontrou-se à mesa, onde tinha o retrato da família, num quadro: o pai, a mãe, ele, ela: pequenina, de vestido curto, com uma boneca nos braços, recaída sobre o colo de Dona Júlia, ainda moça e forte. Tomou o quadro e pôs-se a contemplá-lo e, de novo, os olhos se lhe encheram d'água.

      O pai, muito severo, de pé, apoiado à espada, fitava-o duramente, como se o responsabilizasse por aquele fato que deslustrava o nome que ele havia, com tanto brio, honrado na guerra e na paz, legando-o puro aos filhos.

      E Paulo, com um tremor nervoso, como se efetivamente aquela figura, animada por milagre, lhe falasse, pôs-se a dizer baixinho, em sussurro: "Meu pobre pai! Meu pobre pai!" Mas os seus olhos, empanados pelo pranto, buscavam a criança inocente que ali estava, linda e pura, com os cachos dos cabelos muito negros, confundidos com os bucres louros da boneca.

      Depois o quadro e, acendendo um cigarro, sentou-se na cama e ia tirar as botinas que, com a umidade, se lhe haviam colado aos pés, quando ouviu os passos arrastados de Dona Júlia. A velha empurrou a porta e entrou, d'olhos muito abertos, a arquejar, e foi logo perguntando:

      — Tu falaste no soldado? Quem sabe se não foi ele? - Paulo encolheu os ombros e a velha, sentando-se, continuou: Eu não atino com outra pessoa. Se não foi o soldado, foi alguém da Estrada de Ferro.

      — Qual da Estrada de Ferro!

      Depois de uma pausa, ela insistiu:

      — Para mim, foi o soldado. Eu, se fosse você, ia de manhã ao quartel.

      Paulo explodiu:

      — Pois mamãe acha lá possível que Violante, vaidosa como é, saísse de casa com um soldado?!

      — Quem sabe, meu filho!

      — Ora!... Ela não deu esse passo por amor. Violante

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