Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo
Чтение книги онлайн.
Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Lima Barreto - August Nemo страница 21
O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.
Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de hábito requeriam.
Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas coisas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.
Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero, entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua idéia. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.
Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a área já limpa.
— Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de mato.
A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas coisas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! Seguira-o ao "Sossego" e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador.
— Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as coisas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...
— Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.
Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.
Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do galinheiro:
— Já nasceram os patos, Adelaide?
— Ainda não. Faltam oito dias ainda.
E logo a irmã acrescentava:
— Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?
— Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... Mando um leitão e um peru.
— Ora, tu! Que presente!
— Que é que tem? É da tradição.
Justamente estavam nesse dia assim a conversar as dois irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.
Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo, esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho preto.
Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.
— Boas tardes, major.
— Boas tardes. Faça o favor de entrar.
O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que havia nele de estranho, era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo que todo ele engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis. O visitante falou:
— Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...
— Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.
— Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem nenhuma exigência legal.
O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e continuou.
— Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incomodá-lo... Não é coisa de importância... Creio que o major...
— Oh! Por Deus, tenente!
— Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.
— Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...
— Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.
— É justo.
— O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...
— Não. Espere um pouco...
— Oh! major, não se incomode, Não é pra já.
Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:
— Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?
— Muito bem.
— Pretende dedicar-se à agricultura?
— Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
— Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão cansadas e...
— Qual cansadas, Seu Antonino!