Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Lima Barreto - August Nemo Romancistas Essenciais

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agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa vontade usá-lo da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, e beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo,

      O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.

      Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de hábito requeriam.

      Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas coisas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.

      Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero, entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua idéia. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.

      Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a área já limpa.

      — Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de mato.

      A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas coisas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! Seguira-o ao "Sossego" e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador.

      — Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as coisas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...

      — Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.

      Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.

      Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do galinheiro:

      — Já nasceram os patos, Adelaide?

      — Ainda não. Faltam oito dias ainda.

      E logo a irmã acrescentava:

      — Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?

      — Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... Mando um leitão e um peru.

      — Ora, tu! Que presente!

      — Que é que tem? É da tradição.

      Justamente estavam nesse dia assim a conversar as dois irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.

      Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo, esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho preto.

      Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.

      — Boas tardes, major.

      — Boas tardes. Faça o favor de entrar.

      O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que havia nele de estranho, era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo que todo ele engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis. O visitante falou:

      — Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...

      — Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.

      — Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem nenhuma exigência legal.

      O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e continuou.

      — Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incomodá-lo... Não é coisa de importância... Creio que o major...

      — Oh! Por Deus, tenente!

      — Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.

      — Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...

      — Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.

      — É justo.

      — O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...

      — Não. Espere um pouco...

      — Oh! major, não se incomode, Não é pra já.

      Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:

      — Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?

      — Muito bem.

      — Pretende dedicar-se à agricultura?

      — Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.

      — Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão cansadas e...

      — Qual cansadas, Seu Antonino!

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