Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo
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Coleoni tinha-se sentado. Quaresma também e a moça estava de pé, para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e firmes no encarar. Guardas, internos e médicos passavam pelas portas com a indiferença profissional. Os visitantes não se olhavam, pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fora, era o dia lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e indecifrável, Coleoni, embora mais assíduo nas visitas, notava as melhoras do compadre com satisfação que errava na sua fisionomia, num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:
— O major já está muito melhor; quer sair?
Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e vagarosamente:
— É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incomodar-te tanto mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta da própria bondade. Quem tem inimigos deve ter também bons amigos...
O pai e a filha entreolharam-se; o major levantou a cabeça e parecia que as lágrimas queriam rebentar. A moça interveio de pronto:
— Sabe, padrinho, vou casar-me.
— É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos preveni-lo.
— Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.
— É um rapaz...
— Decerto, interrompeu o padrinho sorrindo.
E os dois acompanharam-no com familiaridade e contentamento. Era um bom sinal.
— É o Senhor Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho? fez Olga gentilmente.
— Então é para depois do fim do ano.
— Esperamos que seja por aí, disse o italiano.
— Gostas muito dele? indagou o padrinho.
Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma coisa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro? Também não. Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo que a ferisse, não tinham o "quê", ainda indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para as grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as idéias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe representar e de amar o indivíduo masculino.
E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela sonhara que era bem possível tornasse a nuvem por Juno... Casava por hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho:
— Gosto.
A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse rápida, não convinha fatigar a atenção do convalescente. Os dois saíram sem esconder que iam esperançados e satisfeitos.
Na porta já havia alguns visitantes à espera do bonde. Como não estivesse o veículo no ponto, foram indo ao longo da fachada do manicômio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ela:
— Que tem, minha velha?
A pobre mulher deitou sobre ele um demorado olhar, úmido e doce, cheio de uma irremediável tristeza, e respondeu:
— Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!
E continuou a chorar. Coleoni começou a comover-se; a filha olhou-a com interesse e perguntou no fim de um instante:
— Morreu?
— Antes fosse, sinhazinha.
E por entre lágrimas e soluços contou que o filho não a conhecia mais, não lhe respondia às perguntas; era como estranho, Enxugou as lágrimas e concluiu:
— Foi "coisa-feita".
Os dois afastaram-se tristes, levando n'alma um pouco daquela humilde dor.
O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açúcar erguia-se negro, hirto, solene, das ondas espumejantes e como que punha uma sombra no dia muito claro.
No instituto dos Cegos, tocavam violino e a voz plangente e demorada do instrumento parecia sair daquelas coisas todas, da sua tristeza e da sua solenidade,
O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no largo da Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanso, com as suas lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos ressoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto, faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do negociante brincam em velocípedes, atiram bolas e ainda mais se sente a diferença da cidade do dia anterior.
Não havia ainda o hábito de procurar os arrabaldes pitorescos e só encontravam, por vezes, casais que iam apressadamente a visitas, como eles agora. O largo de São Francisco estava silencioso e a estátua, no centro daquele pequeno jardim que desapareceu, parecia um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse à casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se aproximava e as toilettes domingueiras já apareciam nas janelas. Pretos com roupas claras e grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas: cartolas antediluvianas ao lado de vestidos pesados de cetim negro, envergados em corpos fartos de matronas sedentárias e o domingo aparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.
Dona Adelaide não estava só. Ricardo viera visitá-la e conversavam. Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, ele contava à velha senhora o seu último triunfo:
— Não sei como há de ser, Dona Adelaide. Eu não guardo as minhas músicas, não escrevo - é um inferno!
O caso era de pôr um autor em maus lençóis. O Senhor Paysandón, de Córdoba (República Argentina), autor muito conhecido na mesma cidade, lhe tinha escrito, pedindo exemplares de suas músicas e canções. Ricardo estava atrapalhado, Tinha os versos escritos, mas a música não. É verdade que as sabia de cor, porém, escrevê-las de uma hora para outra era trabalho acima de sua força.
— É o diabo! continuou ele. Não é por mim; a questão é que se perde uma ocasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.
A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A sua educação, que se fizera vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a atenção de pessoas de certa ordem, Delicada, entretanto, suportava a mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima