Os Lusíadas. Luis de Camoes
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Não faltão ali os rayos de arteficio,
Os tremulos Cometas imitando,
Fazem os Bombardeiros ſeu officio:
O ceo, a terra, & as ondas atroando.
Moſtraſe dos Cyclopas o exercicio,
Nas bombas que de fogo estão queimando,
Outros com vozes, com que o Ceo ferião.
Inſtrumentos altiſſonos tangião.
Respondem lhe da terra juntamente,
Co rayo volteando, com zonido,
Anda em giros no ar a roda ardente,
Estoura o po ſulfureo eſcondido:
A grita ſe aleuanta ao Ceo, da gente,
O Mar ſe via em fogos acendido:
E não menos a terra, & aſsi feſteja
Hum ao outro a maneira de peleja.
Mas ja o Ceo inquieto reuoluendo,
As gentes incitaua a ſeu trabalho,
E ja a mãy de Menon a luz trazendo,
Ao ſono longo punha certo atalho:
Hião ſe as ſombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra, em frio orualho,
Quando o Rei Milindano ſe embarcaua
A ver a frota que no mar estaua.
Vião ſe em derredor feruer as prayas
Da gente, que a ver ſo concorre leda,
Luzem da fina purpura as cabaias,
Lustrão os panos da tecida ſeda:
Em lugar de guerreiras a zagaias
E do arco, que os cornos arremeda
Da Lũa, trazem ramos de Palmeira,
Dos que vencem coroa verdadeira.
Hum batel grande & largo, que toldado
Venha de ſedas de diuerſas cores,
Traz o Rei de Melinde, acompanhado
De nobres de ſeu Reino, & de ſenhores:
Vem de ricos veſtidos adornado,
Segundo ſeus costumes, & primores.
Na cabeça hũa fota guarnecida,
De ouro, & de ſeda, & de algodão tecida.
Cabaya de Damaſco rico, & dino,
Da Tiria cor, entre elles eſtimada,
Hum colar ao peſcoço de ouro fino,
Onde a materia da obra he ſuperada,
Cum reſplandor reluze Adamantino,
Na cinta, a rica adaga bem laurada.
Nas alparcas dos pês, em fim de tudo,
Cobrem, ouro & aljofar ao veludo.
Com hum redondo emparo alto de ſeda,
Nũa alta & dourada astea enxerido,
Hum miniſtro aa ſolar quentura veda,
Que não offenda & queime o Rei ſubido:
Muſica traz na proa, eſtranha & leda,
De aſpero ſom, horriſsimo ao ouuido:
De trombetas arcadas em redondo,
Que ſem concerto fazem rudo estrondo.
Não menos guarnecido o Luſitano,
Nos ſeus bateis da frota ſe partia,
A receber no mar o Melindano,
Com luſtroſa & honrada companhia:
Vestido o Gama vem ao modo Hispano:
Mas Franceſa era a roupa que veſtia,
De cetim da Adriatica Veneza,
Carmeſi, cor que a gente tanto preza.
De botões douro as mangas vem tomadas,
Onde o Sol reluzindo a viſta cega:
As calças ſoldadeſcas recamadas,
Do metal que Fortuna a tantos nega,
E com pontas do meſmo delicadas,
Os golpes do gibão ajunta, & achega:
Ao Italico modo a aurea eſpada,
Pruma na gorra, hum pouco diclinada.
Nos de ſua companhia ſe moſtraua,
Da tinta que dà o Mûrice excelente,
A varia cor, que os olhos alegraua,
E a maneira do trajo diferente:
Tal o fermoſo eſmalte ſe notaua,
Dos veſtidos olhados juntamente:
Qual aparece o arco rutilante,
Da bella Nimpha filha de Thaumante.
Sonoroſas trombetas incitauão,
Os animos alegres reſoando,
Dos Mouros os bateis o Mar co lhauão,
Os toldos pelas agoas arrojando:
As bombardas horriſſonas bramando,
Com as nuuẽs de fumo o Sol tomando,
Ameudam ſe os brados acendidos,
Tapão com as mãos os Mouros os ouuidos.
Ia no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos ſeus braços o leuaua,
Elle coa corteſia, que a razão
(Por ſer Rei) requeria, lhe fallaua.
Cũas moſtras de eſpanto, & admiração,
O Mouro o geſto, & o modo lhe notoua,
Como quem em muy grande estima tinha,
Gente que de tam longe à India vinha.
E com grandes palauras lhe offereçe,
Tudo o que de ſeus Reinos lhe compriſſe,
E que ſe mantimento lhe falleçe,
Como ſe proprio foſſe lho pediſſe:
Diz lhe mais, que por fama bem conheçe
A gente Luſitana, ſem que a viſſe.
Que ja ouuio dizer, que noutra terra
Com gente de ſua ley tiueſſe guerra.
E como por toda Affrica ſe ſoa,
Lhe diz, os grandes feitos que fizerão,
Quando nella ganharão a coroa
Do Reino, onde as Hesperidas viuerão:
E com muitas palauras apregoa,
O menos que os de Luſo merecerão:
E o mais que pela fama o Rei ſabia:
Mas deſta ſorte o Gama reſpondia.
O tu que ſo tiueste piedade,
Rei benigno, da gente Luſitana,
Que com tanta miſeria, & aduerſidade,
Doe mares experimenta a furia inſana.
Aquella alta, & diuina eternidade,
Que o Ceo reuolue, & rege a gente humana:
Pois que de ti tais obras reçebemos,
Te pague o que nos outros não pedemos.