Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

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colérico:

      — Quem é?

      — É o filho da viúva, nhonhô.

      — Que viúva?

      — A mãe de Dona Isaura, aquela mocinha bexigosa.

      — Veio para indagar?...

      — Não, senhor; veio pedir o jornal. Perguntou por Nhá Violante, mas eu respondi como sinhá mandou: Que ela tinha ido passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho.

      E foi-se pelo corredor, como a fugir à fúria do estudante que a seguia, sempre a invectivar aquela súcia de bisbilhoteiros. Dona Júlia, na sala de jantar, encostada à mesa, esperava a negra; vendo, porém, o filho não teve ânimo de fazer a pergunta que já lhe estava nos lábios e pôs-se a disfarçar, arranjando uns embrulhos. Paulo adiantou-se:

      — Vê a senhora? Já querem saber. Até parece que essa gente fareja. Só porque Violante não apareceu hoje já estão todos de orelha em pé. É um horror! Às vezes tenho ímpeto de responder com uma grosseria. Pois não! é demais! Não vou à casa de ninguém, vivo aqui metido, nem à janela chego e estou sempre com a casa cheia. A amizade é um pretexto, o que eles querem é ver como vivemos, que comemos, como nos arranjamos e lá se vai a nossa vida comentada, discutida de casa em casa como um trapo filado e estraçalhado por uma matilha de cães. Não quero saber de relações, dispenso-as. Amanhã, bem cedo, ponho-me na rua procurando casa e hei de achar, seja onde for.

      Dona Júlia concordou passivamente:

      — É mesmo.

      — Quando mamãe está doente nem aqui aparecem. Muito bons para os pagodes e para a maledicência. Não quero! Se não fosse o meu trabalho no jornal eu procurava casa bem longe, num arrabalde, para livrar-me dos tais conhecidos. Infelizmente não posso: estou preso à cidade.

      — Mas há tantas ruas...

      Ele não respondeu. De repente, chegando à porta que levava à cozinha, chamou a negra. Felícia apareceu, de mangas arregaçadas, enxugando o braço ao avental.

      — Como é o tipo do soldado? perguntou.

      A negra baixou os olhos e ficou um momento imóvel, pensativa. como a recordar as feições do homem que ela tantas vezes vira na calçada fronteira, rente ao muro, indo e vindo, com os olhos em Violante. Dona Júlia voltou-se interessada encarando a negra que, por fim titubeou:

      — É um moço assim como vosmecê, mais cheio de corpo. - Logo, porém, arrependida, como para o livrar de suspeitas, afirmou: Mas não foi ele não, nhonhô, não foi. Ind'agorinha mesmo, pouco antes de vosmecê chegar, ele passou por aqui, mais outro, e lá foram para os lados da Rua da América.

      Paulo deu volta coçando a cabeça e Dona Júlia, perdida aquela esperança, sentou-se à mesa, raspando distraidamente umas migas de pão.

      Os dois não achavam palavra. Paulo detinha-se, olhando as paisagens cinzentas do papel da sala, passava os dedos seguindo os contornos dos cães, dos caçadores que, em desabalada corrida, levando os cavalos a toda a rédea, seguiam um grande cervo ramalhudo. Súbito um som fanhoso rompeu o silêncio - era um realejo que soava na rua, perto, tristemente, vagarosamente.

      Dona Júlia levantou a cabeça e ficou imóvel, a ouvir. Paulo voltou-se também para a porta, olhou depois para o quarto de Violante. Logo, porém, vendo a mãe debruçar-se sobre a mesa, sacudida por um pranto nervoso, arrojou-se para a sala, revoltado contra aquela música pecadora que despertava tantas saudades, toda a sua infância e a dela...

      Ah! se Violante ali estivesse já andaria, como uma criança, a fazer voltas de dança rindo às gargalhadas. Era doida por aquela música fanhosa, chegava até a mandar dinheiro ao homem para que a prolongasse monotonamente e a rir, muitas vezes descalça, cabelos soltos, trincando fatias de pão, volteava, volteava, indo, não raro, buscar Felícia à cozinha, quando não arrastava a mãe que com o seu enorme corpo, as pernas muito inchadas, encolhia-se toda, tomada de riso, a agarrar-se aos móveis para opor-se àquela maluca.

      E o realejo gemia. Era o homem que a chamava como se também a quisesse arrancar da miséria. E como que o instrumento sentia, porque se ia tornando cada vez mais triste, mais triste, na rua clara e silente, toda em sol. Faltava o riso de Violante, faltava a sua linda mocidade alegre.

      De repente Dona Júlia levantou a cabeça e, passando a mão pelo rosto, desfeito e molhado, disse arrancadamente, em arquejo doloroso:

      — Não! Não fico mais aqui... Não posso!

      E o realejo tristonho, depois duma pausa, recomeçou a ária melancólica.

      VI

      Resolvido a mudar-se, Paulo saiu na segunda-feira muito cedo, e, no botequim da Central, mexendo lentamente o seu café, recorreu aos anúncios do Jornal, tomando notas em um quarto de papel. Decidiu-se por duas casas "pequenas, pintadas e forradas de novo": uma na Rua dos Inválidos, outra no cais da Glória.

      Foi diretamente à primeira. Era uma casinha atarracada, espremida entre dois sobrados arcaicos, sombria e triste. No telhado verdejavam largas folhas de fumo, descaídas sobre as calhas ferrugentas. Abrindo-a a custo, empurrou a porta, pesada e perra, e entrou como em um jazigo. Tresandava a tintas e, nas paredes de uma área interior, cujo ladrilho eslava todo fendido, havia escaras de limo. O quintalejo, atravancado de tábuas e de ripas, com uma puída escada aposta ao muro, tinha um monte de lixo a um canto e tortulhos gordos pelo chão úmido; e o ar escasso, que circulava por aquelas salas lôbregas, por aquelas alcovas escuras e acanhadas, era frio e tresandava o mofo.

      Paulo fez um esgar de enjôo e tomou com a chave ao taverneiro vizinho, alegando falta de cômodos para a sua família. Seguiu a pé para o cais da Glória. Dava gosto andar com o frescor da manhã suave; e a distância era curta.

      Foi indo devagar, enlevado na beleza de tão doce manhã, clara e tépida, concorrida de vozes alegres, sons festivos, movimento, todas as expansões da vida feliz. De repente, porém, deu com os olhos em uma mocinha à janela de uma casa. Lembrou-se da irmã e, assomado em súbito furor, estugou os passos, remordendo-se em surda revolta contra o mundo, contra todos e tudo - a irmã, que o forçava àqueles incômodos, que o expunha à irrisão; os vizinhos, os companheiros de trabalho, os colegas, todos... tudo...

      Sentia-se mesquinho, como se fosse o único desgraçado no mundo; os próprios mendigos, que esmolavam, sorriam. Só ele andava com a alma denegrida, com o coração pesado, arrastando aquela vergonha.

      Falava baixinho, em solilóquio, e, se descobria alguém às janelas, retraía-se, disfarçava procurando cigarros nos bolsos, e seguia; logo adiante, porém, reentrava nos cuidados sombrios.

      Quando chegou ao Largo da Lapa, viu um quintanista, o Albergaria, parado à esquina, lendo um jornal, à espera do bonde da Misericórdia. Evitou-o, atravessando o largo, d'olhos altos, com medo de que ele o chamasse.

      Foi timidez, a princípio, logo, porém, transformou-se em indignação: carregou o sobrecenho e pôs-se a murmurar: "Mas, afinal, que culpa tenho eu? Sou, então, responsável pelas loucuras de minha irmã? Se eu tivesse um irmão assassino ou ladrão, havia de responder pelos crimes que ele cometesse? não. Então por que me hei de vexar do que fez Violante? Outras têm feito o mesmo e os parentes andam por aí muito calmos, muito empertigados, com mais orgulho, talvez, e até com prestígio. E minha mãe, coitada! que culpa tem ela?" Outras idéias, porém

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