Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo
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— Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do "Monstro" vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.
Paulo, satisfeita a curiosidade, desceu ouvindo sempre o estrondoso rumor do trabalho. Era o "Monstro" do Bruno, pior que o touro brônzeo de Fálaris, porque do seu bojo saíam, não os gemidos de uma só vítima, mas o clamor de toda a humanidade, a resenha da vida universal, cuja percentagem de angústias sobreleva-se avassaladoramente à parte mínima de prazer. E, olhando, parecia-lhe ouvir o arquejo doloroso do mundo, a zoada ansiosa do enxame humano atroando, subindo daquelas finas lâminas flexíveis, como a voz cativa irrompe quando a despertam nos tubos sensíveis do fonógrafo. Desceu.
No corredor, encostado à parede, com as pernas estiradas, um homem dormia, a cabeça pendida sobre um dos ombros, os pés nus, imundos, o peito da camisa aberto, uma bolsa a tiracolo. A porta, em torno dum negro que vendia café, às canecas, um grupo chalrava alegremente, na treva.
Paulo subiu a Rua do Ouvidor obscura e calada.
Um vento frio soprava. O céu negro, sem estrelas, ameaçava aguaceiro e, como chovera copiosamente à tarde, com ventania e trovões, poças d'água refletiam a luz dos combustores. Um cão magro percorria a sarjeta farejando.
Na esquina da Rua dos Ourives estacionava a patrulha. Os soldados, emblocados nos capotes, fumavam pachorrentamente, e os cavalos muito juntos, a cabeça baixa, pareciam dormir fitando, de vez em vez, as orelhas agudas como se perscrutassem rumores no vento.
Uma luzinha tíbia, como de lamparina, atraiu para uma casa os olhares do retardatário. As portas eram fortes e negras, como de ferro e, por um postigo engradado, via-se o interior de uma ourivesaria com os mostradores atopetados de jóias de preço e de baixelas que reluziam.
Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe, romperam em gargalhada estrondosa.
Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: "Que ia recolher." Morando na Rua Senador Pompeu tanto lhe servia aquele como outro. Sentou-se, acendeu um cigarro e, de pernas cruzadas, imaginando fortunas e aventuras, foi-se deixando levar, como em sonho, sem ver, sem ouvir, alheio ao real que o cercava. Repentinamente, porém, lembrou-se da mãe. Que seria dele se a boa velha morresse?
Achacada, sempre a gemer, arrastando a perna túmida e pesada, era ela, ainda assim, quem lhe prestava auxílios, cuidando da casa, regulando as despesas, porque a irmã, sempre a pensar em enfeites, fazendo e desfazendo penteados ao espelho, polindo as unhas, passava os dias na cadeira de balanço, a ler romances e, à tarde, encharcada de essências, com muito pó-de-arroz, debruçava-se à janela, para ver os trens e receber bilhetinhos que os rapazes metiam por entre as rexas da persiana.
Era bonita e esbelta, de um moreno quente de crioula, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual, de lábios carnudos e úmidos. Os cabelos, quando os desprendia, passavam-lhe da cinta em ondas negras e reluzentes. Tinha uma voz lânguida, como ressentida de tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar quebrantado, sonolento, amortecia-se em êxtases sob as longas pestanas curvas.
Paulo dominava-a com aspereza, exprobrando-lhe a vida desmazelada e, quando a velha, na intimidade, referia-lhe algum pequenino escândalo de Violante, rompia, assomado, ameaçando pregar a janela, atirar ao lixo todas aquelas caixas, todos aqueles vidros que entulhavam o toucador. Mas a irmã tinha crises - rolava pela casa, aos gritos, rangendo os dentes, rasgando a roupa, escabujando. E a boa velha, lamentando-se, corria os cantos, procurando remédios e, de joelhos, com a cabeça da filha ao colo, beijando-a, chamava-a, pedindo ao outro que a não tratasse com tanta aspereza, que tivesse pena dela, e instava para que, com afagos, procurasse chamá-la à razão. Ele obedecia contrariado. E Violante, amuada e mais linda depois da excitação nervosa, com os olhos mais brilhantes e a cor das faces mais viva, ia trancar-se no quarto, resmungando ameaças.
Voluntariosa, criada aos joelhos do pai, que a tratava de "princesa", anunciando-lhe sempre um noivo formoso e rico, que a havia de cobrir de sedas e carregá-la de jóias, foi acostumando o espírito com estas idéias de nobreza e fausto; de sorte que, quando lhe morreu o pai, já mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se, com ele, houvesse perdido uma fortuna que já possuía e um noivo que já a visitava em sonhos, formoso como os príncipes dos romances que ela devorava, revendo-se, com enlevo, em todas as heroínas.
Com a monte do pai, major de cavalaria, condecorado por feitos no Paraguai, todo o peso da casa recaiu sobre Paulo que, então, concluía os preparatórios.
Abandonando a idéia de bacharelar-se no Ginásio, matriculou-se na Faculdade de Medicina, conseguindo um lugar na revisão do Equador e algumas lições particulares, com o que fazia uma soma regular que, reunida ao meio-soldo que a mãe recebia, dava para irem vivendo, se não com luxo, ao menos com decência e fartura.
Posto que não achasse gravidade no estado da mãe, andava apreensivo, receoso, imaginando complicações e, volta e meia, lá ia um médico à casa; eram, às vezes, colegas. E os frascos de remédios enchiam prateleiras.
Com aqueles dias úmidos, Dona Júlia sofria atrozmente: mal podia mover-se na casa; sempre acaçapada nas cadeiras, as mãos espalmadas nas coxas, a gemer, dando ordens à cozinheira, que era a criada única que tinham. Ainda assim, se as dores abrandavam, lá ia ela para a vassoura, varrer, limpar os móveis ou arranjar a sala, porque não podia ver um fósforo no chão, nem um átomo de poeira nos seus velhos trastes do tempo do falecido. E, se a moléstia a prendia à cama, lá mesmo, com a perna esticada e untada, com o cesto de costura ao colo, ia cerzindo roupas, remendando meias ou reformando, pacientemente, os casacos da filha.
Profundamente religiosa, tinha no seu quanto, defronte da cama, sobre a cômoda, o oratório ante o qual ardia, perene, a lamparina de azeite iluminando registros milagrosos e duas imagens: a da Conceição e a do Senhor dos Passas.
Paulo ia pensando na boa velha e, quando o bonde passava pela Estrada de Ferro, saltou, subindo a Rua do Dr. João Ricardo, deserta àquela hora da noite. Grossas gotas de chuva bateram nas pedras, uma lufada de vento passou e, ao clarão de um relâmpago, o céu apareceu negro, acastelado de nuvens. Levantou a gola do casaco e, com o guarda-chuva à frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu, rompendo a ventania.
II
Foi com surpresa pressaga que, ao avistar a casa, percebeu luzes por entre as persianas, acusando desusada vigília e logo a idéia de um acidente grave sobressaltou-lhe o espírito. Atravessou a rua a correr e bateu açodadamente à porta, aflito, ouvindo soluços e exclamações desesperadas que vinham do fundo da casa. A cozinheira apareceu, embrulhada num xale, com um lenço à cabeça. Ele entrou d'arremesso:
— Que é, Felícia? Que tem mamãe?
— Foi Nhá Violante que desapareceu, exclamou lamentosamente a