Romancistas Essenciais - Coelho Neto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo Romancistas Essenciais

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De manhã seria tarde; talvez mesmo àquela hora já a sua pobre irmã..." Deteve-se subitamente, sustado por uma cólera violenta, d'olhos cravados no chão; trincou os lábios e um impropério saiu-lhe da boca ressecada. "E a pobre velha? Que seria dela com tamanho choque?"

      Ouviu um tinido de campainha através do surdo rufar da chuva, voltou-se sôfrego: nada! Pôs-se de novo a caminho, com mais ânsia, pelo meio da rua. Um Bêbedo resmungava, chafurdando nas poças, aos trancos.

      Passando por uma casa baixa, iluminada, ouviu falas. Sobressaltou-se-lhe o coração num presságio. Talvez estivesse ali. Parou um momento, à escuta, e, atrevendo-se, espiou pelas frestas da persiana e viu, no meio da saleta triste, sobre uma mesa, um pequenino caixão entre velas. Uma mulher contemplava-o chorando e, em volta, outras mulheres, sentadas, cochichavam. Foi-se.

      Não! Violante devia estar em algum sítio confortável, algum hotel de luxo, com o sedutor. Conhecia-a bem. Não sairia senão com quem lhe pudesse dar o fausto com que sonhava, vendo as gravuras dos figurinos ou lendo as descrições dos romances. Bem certo estava de que a irmã só se deixara arrastar à infâmia por vaidade, calculadamente, não por impulso d'alma.

      Dobrou instintivamente a Rua da Constituição. Os seus passos ressoavam na rua deserta sem que ele os ouvisse, atordoado com os pensamentos que lhe trabalhavam o espírito. Tomou pela Rua do Núncio, desceu a do Visconde do Rio Branco e, achando-se na do Lavradio, houve nele um renascimento de coragem, uma grande e desanuviada esperança. "Podiam encontrá-la ainda pura. Os agentes conhecem todos os recantos e ela, talvez por pudor, resistisse, dando tempo a que a salvassem." E, quase a correr, aos saltos, evitando os lameiros, lançou-se para a polícia. A medida, porém, que se aproximava, como quem se avizinha de uma ilusão, ia-se-lhe a esperança desfazendo n'alma.

      Àquela hora o edifício parecia repousar em sono calmo: a própria sentinela, atabafada no capote, com o capuz pela cabeça, agudo e negro, a lembrar um monge, estava encostada a um dos umbrais, d'arma ao ombro, imóvel. Atirou-se pelas escadas e, em cima, no corredor, à meia luz dormente de um bico de gás, viu dois homens num banco, cochilando. Um deles, porém, mais pronto, ouvindo o rumor, abriu os olhos, pigarreou e, firmando-se, encarou-o carrancudo. Paulo, quase sem hálito, pediu para falar ao delegado: Tinha urgência, era um caso grave.

      — Se não é coisa de muita importância, o melhor é o senhor entender-se lá embaixo com o tenente, porque o doutor está descansando.

      — Não; é mesmo com o delegado que pretendo falar.

      — Quem é o senhor? - perguntou o homem molemente, abotoando o colete, enquanto o outro, que acordara, coçando com fúria a grenha hirsuta, engrolava escarros.

      — Paulo Jove, estudante de medicina. - Já o homem caminhava quando, adiantando-se, ele ajuntou, em tom confidencial: Olhe, diga que sou do Equador. Tenho urgência, é um caso grave.

      O homem correu o reposteiro e desapareceu. Paulo voltou à escada, encostou-se à balaustrada, com o guarda-chuva a escorrer. Só então pareceu dar pelas calças molhadas. Pôs-se a mirar os pés e, tirando o lenço, passou-o pelo peito, pelos ombros, pelas coxas. Estava regelado e, por vezes, uma dor fina atravessava-lhe a cabeça, como se a varasse um estilete.

      Um soldado subia a escada, com a espada a bater nos degraus. Em cima respirou com força e tomou à direita, lento, achamboado, desaparecendo num corredor, Impaciente, Paulo ia chegando ao reposteiro. quando o homem, com uma voz gosmosa, o chamou:

      — O senhor não pode entrar; espere um pouco.

      — Pois não.

      Afastou-se e pôs-se a passear, arrepelando os cabelos molhados, a pensar em Violante, vendo-a, acompanhando-a na fuga, pelo braço de um homem misterioso que a levava, com ânsia lasciva, os dois cobertos pela mesma capa, correndo, felizes, por entre árvores, como na gravura idílica de Paulo e Virgínia. Vagarosamente, o que fora anunciar, entreabriu o reposteiro e chamou-o: "Pode vir". Precipitou-se: quis deixar o guarda-chuva à porta, a escorrer, chegou a encostá-lo; logo, porém, retomando-o, entrou em pontas de pés, tímido. O homem indicou-lhe um sofá e foi encostar-se à mesa, bocejando. Pôs-se a olhar - a sala, em silêncio, estava iluminada e, sobre a mesa, acumulada de papéis, havia um capote e embrulhos.

      Aquele abandono dava-lhe uma impressão acabrunhadora e, como se aquela sala, que era o vazadouro dos crimes, estivesse impregnada de um fluido mau, com um ambiente sinistro, infeccionada pelas confissões dos réus, como as enfermarias dos hospitais ficam viciadas com a respiração dos doentes, as idéias se lhe foram tornando sombrias. Já não era um doce idílio que ele via introspectivamente, através da claridade da imaginação, que opera, como uma lâmpada mágica, alumiando devaneios e conjecturas - era um crime: Violante a estorcer-se nas mãos brutais de um homem, a gemer, a implorar, meiga e infeliz, com sangue a escorrer-lhe do seio, com lágrimas nos olhos assombrados e, em torno dela, todo o horror de uma espelunca. D'olhos muito abertos, a respiração tomada, viu sair de uma porta fronteira um homem pálido, de barba ruiva, estremunhado, a ajustar ao corpo um robe de chambre de ramagens. O introdutor disse, surdamente, como se não quisesse perturbar o silêncio da casa:

      — É este moço.

      Paulo adiantou-se para o delegado, que se sentara molemente, tomando na mesa uma espátula, com a qual se pôs a bater na pasta.

      — Sente-se - disse em voz pausada e fanha. - Estou às suas ordens.

      O estudante chegou-se à mesa trêmulo, esfregando as mãos e, depois de haver lançado um olhar ao contínuo, que se deixara ficar à porta, disse:

      — Sou estudante de medicina, sr. doutor: Paulo Jove; trabalho no Equador. O que me traz aqui é o desaparecimento de minha irmã.

      O delegado cruzou as pernas e, sem levantar os olhos, friamente, perguntou:

      — Desapareceu?

      — Sim, senhor; hoje.

      — A que horas?

      — Das onze e meia para a meia-noite. Em casa não viram e minha mãe só deu pelo fato muito tarde, quando a chamou.

      — Foi só?

      — Não sei, sr. doutor.

      — Não é natural. - E, depois de uma pausa: Desconfia de alguém?

      — Francamente. sr. doutor... - meneou com a cabeça negativamente e encolheu os ombros. - Com a minha vida pouco paro em casa. Minha mãe, sempre doente ou a cuidar do serviço, raramente aparece na sala. A criada falou em um soldado. - Deu d'ombros: - Mas não creio.

      — Onde mora?

      — Na Rua Senador Pompeu.

      — Seu nome?

      — Paulo Jove.

      — E ela, a moça?

      — Violante.

      — Quantos anos?

      — Dezoito.

      — Dezoito?

      — Sim, senhor.

      O delegado ia garatujando em uma folha de papel; deteve-se e, sem levantar a pena, murmurou:

      — Traços.

      —

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