Mundanismos. Diniz Almachio

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Mundanismos - Diniz Almachio

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      Mundanismos

      NEDDA

      Manhansinha.

      A sala, de azuladas paredes seminúas, estava pobremente mobiliada: era no saguão da casa, e as duas mulheres entraram às tontas, até se abrirem de par em par as gelosias.

      SAUL, de NEDDA esposo, ficàra a dormir na alcova.

      E NEDDA, abysmada com a indifferença delle que apenas lhe não dirigia um monosyllabo desde a hora do facto, comprehendeu logo que DONA LOURA, a sua mãe, era uma interprete das indisposições do genro…

      Num canapé, as duas mulheres, DONA LOURA, archaica nas suas vestias de capote e turbante, e NEDDA, deliciosamente matutina num roupão branco que descansava, sans-dessous, sobre a finissima camizêta de cambraias, – sentaram-se, afundando em concavos a palha flaccida do cansado movel…

      – Esperava-te, maman, qualquer das horas. Quando vejo Saul levando-me entre dentes e indisposto como um burguês dispeptico, silencioso como uma esphynge e entristecido como um beato sem almoço, adivinho logo que vens por ahi como a mensageira da paz. E elle foi procurar-te hontem à tarde…

      – Exactamente.

      – Previ tudo isto. Ha cinco dias que nós não falamos, e, pensando-o na rua, hontem, vim ter aqui. Foi quando topei com elle, sentado naquella cadeira, lendo a Biblia, ou folheando-a, apenas… Vendo-o, assustei-me e não contive um gritinho de susto. Mas tornei immediatamente sobre os meus passos. Ha quatro annos que somos casados e nunca passamos dois mezes sem uma rusga. É sempre elle quem as promove com um resaibo de malentendido ciume. Aceito sempre o seu rompimento e nunca lhe dei a honra de capitular nas hostilidades. Quando ellas são de nonada, aqui mesmo se resolvem; mas, quando avultam como agora, elle te vai buscar como intercessora. Jà sei que vamos ter, como sempre, uma crise de amorosidades que me enfastiam. Lastimo é não conceber um filho desse homem para o embeiçar pela nova criatura e sentir-me menos jungida às suas intemperanças de… mal educado! Ás vezes, chego a ter nojo do senhor meu marido…

      – Que blasphemia, Nedda! Dizes isto do teu esposo com um sangue frio que me pasma…

      – Devias esperar isto. Cazei-me contra a minha vontade ao depois de ter o assedio do seu amor por mais de cinco annos. Tudo inventei para que um tal matrimonio não se fizesse. Por ultimo espalhei, e fiz conhecer-se em caza, por torna-viagem, a mentira de que Saul é um tuberculoso. Tanto mais eu o aborrecia, quanto a senhora e o papá intervinham, patrocinando a causa do moço platonico. Dá-me, na verdade, um insistente desejo de rir muito quando lembro os idealismos delle, seguindo a minha sombra, porque nunca lhe deixei o direito de enfrentar-se commigo em parte alguma… Expúz-lhe sempre que sonhos não me satisfaziam, nem eram para o meu temperamento homens vaporosos, poetas e doutores… Movi-lhe intensa guerra, apaixonando-me por Frederico Stöltze. Está! Com este provavelmente eu teria sido bem cazada. O pobre «allemãosinho» levou o caso muito a serio e cazou-se, logo que eu o abandonei, com uma defeituosa… Foi um despique, não ha a menor duvida, mas quem sahiu perdendo foi elle. Saul é um temperamento de phoca…

      – Respeita o teu marido, minha filha!

      – Pois não é, maman?

      – Essas couzas não se devem dizer…

      – Não tratarei de occultar o sol com a mão. Já disse e é mesmo: um temperamento de phoca. Só quer hybernar sobre os livros, deante dos quaes se abespinha como o animal sobre o gêlo. Eu, porem, quero muito sol, muita luz, muito calor, muita actividade… Maman, o que vocês velhos veem no cazamento é o interesse de collocar as filhas, porque ficando velhos receiam que nos tornemos muito sós no mundo. Por isso acontecem destas, cazamo-nos com a vontade dos papás encarnada na figura de um homem que não é a correspondencia de nosso instincto. Olha! Não intervirei nunca no cazamento de ninguem: cada qual commetta a sua doidice como quizer, e, se escolher um lorpa como Saul, arrependa-se de si mesmo e não me culpe a mim.

      – Tu vês no homem uma excitação, Nedda, quando devias ver uma satisfacção.

      – Deixasses eu escolher como tivesse querido, e estarias livre hoje dessas trabalheiras de paz… Saul, antes de meu marido ser, soffreu toda a minha repulsa. Cazada fui tolerante. Elle, no entanto, não sabe aproveitar-se de minha tolerancia e quer subserviencia, servidão, ou coisa similhante… Está enganado! Devias ter sanccionado a minha repulsa logo de principio. Lembras-te do convescóte dado aos chilenos, nas Salinas? Tu não foste, e Saul, que era apenas meu pretendente sem a menor esperança, moveu contra mim uma intriga terrorosa, porque viu, no campo, o primeiro tenente Santander amarrar os cordeis de minha botina que estavam difficultando-me o andar. Deves recordar-te de como energicamente o reprimendei, quando soube que lhe cabia a autoria do contado… Note-se que era apenas um pretendente, como muitos havia, todos suggestionados pela minha belleza pouco commum neste bairro de mulheres feias. Afinal, maman, que te disse elle desta vez?

      – Saul comprehende o amor como uma esthesia, minha queridinha, e tu o comprehendes como um devaneio. Isto é proprio para as meninas. Tu te esqueces, e nisto eu lhe dou razão, que és uma senhora escrava da moral esponsalicia. Contou-me o teu marido um facto em que elle te surprehendeu. Realmente, se as cousas se passaram como podem ser suppostas, e elle não quer crer, tu andaste mal.

      – Tu o ouviste, elle contou o acaecido a seu geito… Ouve, agora, como tudo se deu…

      – E dispensavel Nedda. O passado está passado. O que é preciso é que não dês lugares a aleives e que poupes os amuos. A alma dos homens tambem calleja. Os amuos fazem pequenos callos, mas tempo virá em que, callejada a alma, o amuo será definitivo.

      – Que teria isso?

      – Um escandalo, minha filha!

      – Para adquirir a minha liberdade maman, que tu sacrificaste, eu não me pouparei a um grande escandalo.

      – Toma juizo, doidinha. É preciso acabares com estas zangas e receberes o teu marido como o teu senhor…

      – Hein?.. Não me zangarás, maman, pódes ridicularizar-me como entenderes… Não me darei por achada.

      – Não promovo senão o teu bem. Resolve a crise e sê… mulher de teu marido.

      – Jà estás julgando o feito?

      – Tu tens toda a razão, elle tem igualmente toda a razão. Harmonisem-se e sejam felizes.

      – Pareces-me uma juiza a Salomão, com a differença de que o rei hebreu ouvia ambas as partes em conflicto, e tu julgas com a audiencia de uma só…

      – Interpretas muito mal o meu genio.

      – Não te interessa conheceres a injustiça de que sou accusada pelo sr. meu marido?

      – Fala, minha filha! Mas tem a certeza de que, fosse qual fosse a accusação, eu nunca seria contra ti.

      – Obrigada, maman! Quero, entretanto, justiça, e que, como Saul, não julgues pelas apparencias. Daria a vida para saber como elle te referiu o que se passou…

      – Deixa o que elle me disse. Narra o que tu sabes…

      – Pois bem! Na terça-feira, maman, de combinação com Saul, resolvi passar uma temporada num arrabalde. E, devidamente autorisada por elle que me falou pelo telephono, fui à Barra correr uma cazinha vaga e que nos serviria. De caminho, encontrei-me com o dr. Eduardo que, ao depois de saber ao que eu ia, daquelle modo desacompanhada, teve a gentileza de offerecer-se-me para o serviço de abrir e fechar portas. Aceitei e foi elle quem tomou as chaves na taverna da esquina… Vê tu!.. Não fôsse elle e teria eu de entrar numa taverna,

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