Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo Romancistas Essenciais

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forma, cor, contornos suaves, olhos matadores, cabelos escuros, voz harmoniosa, enérgico sentimento, e com soluços o comove, e com exprobrações o faz conhecer e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração, que se havia convertido em foco de paixões sanguinárias, era agora ninho de doce e indefinível sentimento.

      O bandido estava experimentando, não a lascívia bruta que proporciona rápidos prazeres, dele conhecidos como a aguardente que bebia nos dias quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benévola, branda e terna que o impelia para a moça, primeiro pelo espírito, e só depois pela beleza da forma que o atraía; e essa fatalidade era tão poderosa que ele não achava forças em si para lhe resistir apesar do seu querer.

      Chegando à beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da visão que aí deixara, achou em seu lugar a solidão infinita, a solidão só.

      Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava-se das margens, com os ruídos do deserto, fresca e grata emanação que teve para o seu peito abrasado o efeito do bálsamo fragrante.

      Pareceu-lhe que debaixo da folhagem do juazeiro onde, segundo o seu pedido, esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

      — Luisinha? Luisinha? chamou ele.

      Ilusão! Estava ali o vácuo mais cruel do que um raio que o houvesse fulminado. A sombra da árvore movida pela brisa noturna representava a forma graciosa que o bandido acreditou ser Luísa.

      — Foi-se embora! disse o Cabeleira esmagado.

      Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planície que se estendia diante de si. Ninguém! Nem sequer um vulto que por um instante ao menos lhe desse o prazer de uma nova esperança, falaz embora como a que se despedaçara a seus pés naquele momento. Só o deserto lhe apareceu, menos vago, mais real com sua taciturna imensidade, só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas, e das águas mortas.

      Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro na mata. Lembrou-se de banhar as feridas como costumava depois de idênticos desastres. Mas a água fresca que tantas vezes lhe havia servido de bálsamo refrigerante, produziu-lhe agora diferente efeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e ele caiu sem sentidos à beira do poço.

      Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se confunde no infinito. A viração matutina transmitiu-lhe aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes nos poços como de costume.

      Levantou-se ainda aturdido. Seus olhos foram logo cair sobre o lugar onde na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte. Não se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido deu então o andar para a estância, com o pensamento concentrado em Luísa que, tendo-se visto livre de suas mãos, correra em socorro de Florinda.

      — Minha mãe? minha mãe? chamara ela, abraçando o corpo da vítima, e chorando como criança.

      No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito para lembrar-se das últimas palavras do Cabeleira. «Com pouco ele estará aqui outra vez, pensou ela. Deus me livre de que ele venha ainda encontrar-me neste ermo. Que seria de mim se tal acontecesse? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e desamparado?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que amanheça. Há de aparecer alguém que me ajude a levá-lo para casa».

      E aflita, e consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram-se sobre a areia, à beira dos poços. Ela sentira então voltar-lhe o ânimo, falara, perguntara quem estava ali, pedira que a fossem amparar em tamanha aflição, mas ninguém a ouvira, ninguém acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram as sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o bandido como vimos.

      A noite, porém, corria com rapidez. A Lua que descia a ocultar-se por detrás da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza, O Silêncio tornava-se mais profundo, tornava-se absoluto. O sítio, de si ermo, estava agora lúgubre por se haver convertido em mansão de morte e luto.

      Luísa lembrara-se de ir chamar alguém, visto que ninguém lhe aparecia para a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais próxima era a de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de légua do lugar. Além disso, ela não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos quanto mais por horas.

      De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado algum protetor. Mas logo voltara, lembrando-se de que o cadáver podia, de um instante para o outro, ser ofendido por algum animal.

      — Não, não, minha mãe! exclamara ela. Não te deixarei, haja o que houver.

      Então ela vira que o cadáver erguera os braços para conchegá-la, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fora como ilusão dos olhos dela.

      — Abraça-me, minha mãe, abraça-me. Leva-me contigo que eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

      Mas, sentindo a pressão física e irrecusável dos braços que tinha por mortos, recuou para à pálida claridade do escasso luar, certificar-se da verdade.

      — Não fujas, Luísa. Vem. Não estou morta. Ajuda-me, que me levantarei.

      Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquela voz branda e benévola que ela estava acostumada a escutar desde a infância como o eco de maternal providência.

      — Minha mãe! Vive ainda, minha querida mãezinha? perguntara Luísa, chorando e sorrindo alternativamente, beijando como louca sem ordem nem moderação, aquele cadáver que se tornara vivente, aquela vida que ressuscitara no seio da natureza onde lhe parecera que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas que as tempestades arrojam aos charcos e marnéis.

      — Vê se podes levantar-me, Luisinha.

      — Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Eles não tardam por aí, creio eu. Vamos já minha mãe. Está me parecendo que dali, daquele mato traiçoeiro, um homem nos acomete, ou um tiro nos vem ferir.

      Cambaleante e trôpega, Florinda dera o andar arrimando-se no ombro da filha.

      — Que tens, Luisinha, que olhas tão horrorizada para aquela banda? Fez-te algum dano o assassino?

      — Não, nada me fez. Mas eu tenho medo destes lugares. Nunca mais virei buscar água aqui.

      — Conta-me tudo, Luisinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era ele? Não o conheceste? Seria o Cabeleira?

      — Não sei, minha mãe. Estava já tão escuro quando ele apareceu... Sei porém, que ele se compadeceu de mim.

      — Estás dizendo a verdade, Luisinha?

      — Sim, minha mãe, ele não me ofendeu. Dando mostras de estar arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

      — Malvado! disse Florinda. Que pancada me deu ele! Põe a mão em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem Santíssima! Não sei

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