Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo
Чтение книги онлайн.
Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Franklin Távora - August Nemo страница 20
Luísa, novamente aflita, volvendo os olhos em torno de si, viu, a poucas braças, uma sombra imóvel que brilhou aos seus olhos como um astro de proteção e conforto.
Estavam salvas. Era a casa de Liberato.
VIII
A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas podia considerar-se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência, pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio peitoril de madeira que não contribuía pouco para sua rústica elegância.
A pequena distância tinham sido edificadas três casas menores e menos vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, e nas outras duas os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via-se outra casinha que na forma arremedava a casa-grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão, aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.
Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados e vazantes e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras, destilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo o ano.
Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos, aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxilio mútuo, recíproco respeito e comum felicidade.
Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por costume caçar pacas e tatus uma vez por outra, quando fazia luar e o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores. Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes da engenhoca.
Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia-noite até o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.
O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza. Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia com seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu espesso véu.
Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não em Luísa, que via próximo o termo da vida de sua mãe privada novamente do uso da fala por lhe haver voltado a congestão.
Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo sem que os caçadores houvessem volvido a seus lares. Então a consternação tornou-se geral e verdadeiramente cruel.
As famílias reuniram-se todas na casa-grande para se protegerem em caso de perigo que logo tiveram por iminente.
Três dias se passaram nessa aflição que se não pode descrever mas que facilmente se imagina.
Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem? O capitão-mor achava-se no Recife, e o povoado, que um século antes constava de uma. capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta história; precisava também de proteção.
De sua agonia a veio tirar um caboclo velho, que morava no caminho do povoado, em terras da engenhoca, e que era o estafeta do lugar. Vivia só em uma palhoça à beira da estrada. Chamava-se Matias mas era mais conhecido pela alcunha de Veado, a qual se originara de ser ele muito ágil e andador.
Matias, achando-se sem fumo para o cachimbo, dirigiu-se à casa-grande no pressuposto de encontrar aí o Liberato que uma vez por outra lhe dava do melhor que tinha alguns pedaços para seu gasto. Só então soube do que havia, e logo se ofereceu para ir dar com o crioulo a quem devia muitas obrigações e respeito. Havendo Rosalina aceitado o oferecimento, Matias voltou à choupana a buscar uma espingarda velha, e um minuto depois estava no rasto dos caçadores.
Antes de transpor os limites da fazenda, viu ele para as bandas do Monte das Tabocas um bando de urubus esvoaçando como costumam quando sentem carniça. Seria alguma rês morta o objeto da inspeção dessas aves? Talvez fosse. A seca estava fazendo no gado vítimas aos centos.
O Veado porém, naturalmente suspeitoso, acreditou logo que estava ali o cadáver do Liberato ou de alguns dos seus.
Para ir ter à grota sobre a qual se libravam os urubus, não era preciso entrar a mata, mas unicamente contorná-la pelo lado oposto ao rio. O terreno apresentava desse lado um vasto tabuleiro, e depois ia gradualmente alteando até a grota, que se interpunha entre o tabuleiro e a mata, formando um fosso natural que protegia o couto. Só quem tivesse grande coragem, e fosse perfeito conhecedor dos acidentes do solo, se animaria a arriscar o pé no profundo despenhadeiro.
Matias em pouco tempo atravessou toda a planície e chegou à borda do abismo. Cheiro de carnes putrefatas feriu-lhe logo o olfato agudíssimo que sentia, à distância, o quati, o veado, a anta, e até a cobra.
De cima nada pôde ver, porque do fundo do vale e das encostas da montanha se levantava uma vegetação secular cuja folhagem vasta e enredada parecia destinada a conservar perpetuamente oculta às vistas do homem a escusa região. O cheiro da carne corruta porém foi um indício, um raio de luz para o índio que, havendo tomado a peito descobrir a verdade, estava no propósito de não hesitar, para o conseguir, diante da perda da própria vida.
A seus pés mostrava-se um sulco deixado no terreno pelas águas que, descendo ao longo do estreito espinhaço, aqui se escoavam para o tabuleiro, ali para dentro do precipício. Por ele se encaminhou Matias, arrimando-se na espingarda, e com ela rompendo a custo os cipós que formavam diante de sua passagem uma rede quase inextricável.
Passou-se uma hora. O Sol chegou ao poente. Veio o lusco-fusco, e com ele aumentaram as tristezas, os medos e as agonias das mulheres recolhidas na casa-grande.
Rosalina, tendo posto todos os cães da banda de fora, e fechado todas as portas da casa, abriu o seu tosco oratório e convidou as outras ao terço tradicional, agora mais do que nunca necessário para fortalecer os espíritos abatidos.
Florinda estava expirando. Ao lado dela achava-se Luísa desfeita em lágrimas, e Aninha que ajudava a enferma a morrer. A porta do aposento inteiramente aberta deixava ver as outras mulheres de joelhos na sala, aos pés do oratório, cantando as rezas que constituem o terço, essa parte do culto externo que, depois de longamente usada em quase todo o norte, desapareceu das capitais, e já não tem no próprio interior das províncias a prática geral a que em grande parte se deve referir o adoçamento dos costumes dessas povoações antes de haverem sido dotadas com as escolas e com os institutos de educação que atualmente as disputam à ignorância com mais vigor e proveito.
De súbito o ladrar dos cães veio interromper o concerto das vozes femininas que enchiam o âmbito da sala, e iam repercutir no vasto pátio. O ladrar aumentou, e com ele tornou-se mais distinto, mais próximo, ao princípio um estrupido de passos, depois um ruído de vozes surdas do lado de fora da habitação.
Nesta a alegria e a aflição,