Romancistas Essenciais - Franklin Távora. August Nemo
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— Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas, abram a porta e saiam sem susto que não havemos de brigar — disse Joaquim.
O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as vozes das mulheres.
— Que fazem, que não saem logo? perguntou o Mulatinho depois de alguns minutos de espera infrutífera.
— Venham para fora, raparigas — acrescentou o Trovão.
Ainda bem não tinha proferido estas palavras, quando a frente da casa vinha abaixo, atirando torrões abrasados contra as feras que, afrontando o pudor com expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade, à medonha representação.
— Parece-me que as caiporinhas se escaparam — disse Joaquim.
A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos portais descansavam uns restos de caibros incendidos.
Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram-na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas ainda não haviam chegado.
Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear do incêndio, veio ressoar no pátio.
— Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo!
Então viu-se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio com Florinda às costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica e sobrenatural.
Os malvados, sem se poderem governar, voltaram um passo atrás, não tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento a última imagem.
— Diabo! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão do que as vítimas.
— Todas mortas! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava a malograda e lasciva esperança.
— Só nos resta uma — disse o Trovão, correndo, em busca de Luísa que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto do cadáver de Matias.
— Cá está ela.
— São duas, são duas.
— Esta é minha, exclamou o Trovão, acercando-se de Florinda para assenhorar-se dela.
— Trovão do diabo! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão. Não vês que é uma defunta?
Florinda estava na realidade morta.
— Resta-me a outra.
— A outra? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços?
— Há de ser minha, custe o que custar, redargüiu o negro.
— A outra é minha — disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente os dois bandidos.
Era o Cabeleira.
IX
PROFUNDA revolução se havia operado durante uma noite no íntimo do bandido.
Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à família de Liberato, a qual por se achar mais próxima do que qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.
Cabeleira não deu mostras de que aprovava, ou reprovava semelhante resolução.
Seu ânimo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas, mostrava-se agora frio diante do assentado acontecimento. Viração suavíssima passara por cima do férvido charco das suas paixões, e deixara, se não purificadas, decerto quietas as águas que aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas águas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar-se mansas, como as dos lagos, azuis como as dos golfos.
A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio, a sua tristeza e a sua abstração aos ferimentos recebidos na luta.
Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto proporcionava, nas mãos do inspirado tocador, momentos de prazer e consolação.
Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda da grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava o vasto sertão opresso e abrasado.
Aos sons da viola puseram-se uns a cantar, outros a dançar, como brincam saltando as crianças nas campinas.
De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem.
— Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grota, disse ele aos camaradas.
— Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão gacheiro e amedrontado, que não pode ser amigo nosso.
Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias.
Um deles quis imediatamente estendê-lo por terra com um tiro do seu bacamarte. Assentaram porém ocultar-se a fim de verem primeiramente o que pretendia.
Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos os malfeitores sumiram-se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo abismo.
Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade por modo irresistível, o fez sobressaltar-se. Ele se lembrara de que se os companheiros conseguissem apoderar-se do desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia-se naquele momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem que não pôde acabar consigo que voltasse à beira da grota.
— Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria, disse de si para si. Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também não o irei salvar.
O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo que ele trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê, a vasa corruta e pestilencial.
Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele sem piedade. Suplício atroz e covarde que o índio sofreu com estóica resignação característica de sua raça.