Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros страница 15
— Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
— Tudo, senhor pároco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Céu, que até chega a fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse à porta da sala:
— Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.
— Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
— Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a tossezita.
— Então não se dava bem com o óleo de fígados de bacalhau?
— Qual! fez ele desconsoladamente.
— Uma viagem à Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a Sra. D. Joaquina Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade súbita:
— Uma viagem à Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de administração com dezoito vinténs por dia, mulher e quatro filhos! Para a Madeira!
— E como vai ela, a Joanita?
— Coitadita, lá vai! Tem saúde, graças a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; demais a mais agora a criada também caiu de cama! É o diacho! Paciência! Paciência! — E encolhia os ombros.
Mas voltando-se para a S. Joaneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
— E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o pároco que aquele rapaz, o Artur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bela voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joaneira, enchendo as chávenas de alto, dizia:
— Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...
E Artur oferecia açúcar com o seu antigo gracejo:
— Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas; sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nódoas do chá, estendiam prudentemente os lenços sobre o regaço.
— Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
— Obrigado.
— Aquele ali. É toucinho do Céu.
— Ah! se é do Céu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com a ponta dos dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de música; e Amélia, logo que a Ruça levou a bandeja, acomodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarelo.
— Então hoje que há-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:
— O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.' O descrido.' o nunca mais!
O cônego Dias disse do seu canto pesadamente:
— Ó Couceiro, vá lá aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
— Credo! por quem é, senhor cônego! Que lembrança! E a Sra. D. Joaquina Gansoso resumiu:
— Nada: uma coisa de sentimento para o senhor pároco fazer idéia.
— Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, ó Artur, uma coisa de sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente à face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma canção dos tempos românticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, num bosque, por uma tarde pálida de Outono; depois, o homem solitário e precito, que inspirara um amor funesto, ia errar desgrenhado à beira do mar; havia uma sepultura esquecida num vale distante, brancas virgens vinham chorar à claridade do luar!
— Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o acompanhamento, sorria em redor — e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes podres. O padre Amaro, ao pé da janela, fumando, contemplava Amélia, enlevado naquela melodia sentimental e mórbida: o seu perfil fino, de encontro à luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e ele seguia as suas pálpebras de grandes pestanas, que do teclado para a música se erguiam e se abaixavam com um movimento doce. João Eduardo, junto dela, voltava-lhe as folhas da música.
Mas Artur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto desolado e veemente, soltou a última estrofe:
E um dia, enfim, deste viver fatal, Repousarei na escuridão da campa!
— Bravo! bravo! exclamaram.
E o cônego Dias comentou baixo ao pároco:
— Ah! para coisas de sentimento não há outro. — E bocejando enormemente: Pois, menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituais; e a Sra. D. Josefa Dias, com o seu olho de avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso saco dos números.
— Aqui tem um lugar, senhor pároco, disse Amélia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-se um pouco corado, ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silêncio; e, com a voz dormente, o cônego começou a tirar os números. A Sra. D. Ana Gansoso dormitava ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, caindo sobre o xale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões enegrecidos do uso, e as mãos secas das velhas, pousadas em atitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chama alta e direita.
O cônego rosnava os números com as pilhérias veneráveis da tradição: 1, cabeça de porco! —