Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros страница 16
E a irmã do cônego, sôfrega:
— Chocalhe esses números, mano Plácido! Vá!
— E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
Enfim o cônego quinou. E Amélia olhando em redor pela sala:
— Então não joga, Sr. João Eduardo? disse ela. Onde está?
João Eduardo saiu da sombra da janela, por trás da cortina.
— Tome lá este cartão, ande, jogue.
— E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joaneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez réis.
— Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irmã do cônego que não tocara no seu cobre acastelado. João Eduardo disse, curvando-se:
— Parece-me que a Sra. D. Josefa não entrou.
— Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco réis, por sinal! Que tal está o homem!
— Ah! bem, disse ele então, fui eu que me esqueci! Cá ponho. — E rosnou: beata e ladra!
E a irmã do cônego dizia no entanto baixo à Sra. D. Maria da Assunção:
— Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
— Só quem não está feliz é o senhor pároco, observaram.
Amaro sorriu. Estava distraído, e fatigado; às vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amélia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
— Olhe que não marcou, senhor pároco.
Tinham já apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos para quinarem o número trinta e seis.
Em roda repararam.
— Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assunção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis não saía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amélia receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.
O cônego tirava os números com uma pachorra maliciosa.
— Vá! vá! Ande com isso, senhor cônego! diziam-lhe.
Amélia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
— Dava tudo para que saísse o trinta e seis!
— Sim? Aí o tem... Trinta e seis! disse o cônego.
— Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o cartão do pároco e o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito corada.
— Ora Deus os abençoe, disse o cônego, jovial, entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de dez réis.
— Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
— Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que entusiasmo! — E como ela ia responder: — Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário; mas distraia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama, com o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçozinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do quino, com uma grande sede além disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imóvel, com um suor à raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amélia, serena, perguntou de dentro:
— Que queria, senhor pároco?
— Vinha buscar água, balbuciou ele.
— Aquela Ruça! aquela desleixada! Desculpe, senhor pároco, desculpe. Olhe aí ao pé da mesa, a bilha. Achou?
— Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a água escorria-lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amélia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.
V
Ela, em cima, não dormia também. Sobre a cômoda, dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de morrão de azeite; brancuras de saias caídas no chão destacavam; e os olhos do gato, que não sossegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade fosfórica e verde. Na casa vizinha, uma criança chorava sem cessar. Amélia sentia a mãe embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho no berço, e grávida de outro — para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura — e mirrada agora, tão chupada!
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua mãe dizia-a, nas longas noites de Inverno, ao irmãozinho que morrera!
Lembrava-se bem! moravam então noutra casa, ao pé da estrada de Lisboa; à janela do seu quarto havia um limoeiro e a mãe punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do Joãozinho, a secarem ao sol. Não conhecera o papá. Fora militar, morrera novo; e a mãe ainda suspirava ao falar