Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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voltando para casa, continha-se para não correr pelas ruas de batina. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto num raio de sol muito quente: recordava o rosto de Amélia, a redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras que lhe dissera: - Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entrou-lhe então na alma com a violência de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os recantos do seu ser com um murmúrio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte ao espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele! Mal pôde jantar. Com que impaciência desejava a noite! A tarde clareava; a cada momento tirava o seu cebolão de prata, indo olhar à janela, com irritação, a claridade do dia que se arrastava devagar no horizonte. Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes de sair rezou cuidadosamente o seu Breviário - porque, em presença daquele amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.

      Ao entrar na rua de Amélia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, sufocado; pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericórdia, que há tantas semanas não ouvia.

      Que admiração quando ela apareceu na sala de jantar!

      — Ditosos olhos que o vêem! Pensávamos que tinha morrido! Grande milagre!

      Estavam a Sra. D. Maria da Assunção, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com entusiasmo para lhe dar lugar, admirá-lo.

      — Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!

      O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur Couceiro improvisou-lhe um fadinho à viola:

      Ora já cá temos o senhor pároco

      Nos chás da S. Joaneira.

      Isto já parece outra coisa,

      Volta a bela cavaqueira!

      Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.

      — Ai, tem sido uma ingratidão dele!

      — Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o cônego. Uma casmurrice, digo eu!

      Amélia não falava, com as faces abrasadas, os olhos úmidos pasmados para o padre Amaro - a quem tinham dado a poltrona do cônego, e que se repoltreava nela, túmido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilhérias com que contava os desleixos da Vicência.

      João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho álbum.

      IX

      Assim recomeçou a intimidade de Amaro na Rua da Misericórdia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviário; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos moles apoiadas ao cabo dos guarda-chuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia às vezes um susto indefinido de achar a mãe já desconfiada ou Amélia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.

      Encontrava já as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cônego, que jantava agora muito com a S. Joaneira e que àquela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca, dizia-lhe bocejando:

      — Ora viva o menino bonito!

      Amaro ia sentar-se ao pé de Amélia, que costurava à mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos os dias como o mútuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a véspera; e às vezes mesmo, debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a cavaqueira. Eram sempre os mesmos interessezinhos, as questões que iam na Misericórdia, o que dissera o senhor chantre, o cônego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novais...

      — Mais amor do próximo! resmungava o cônego mexendo-se na poltrona. E com um arroto curto tornava a cerrar as pálpebras.

      Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amélia imediatamente abria a mesinha para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o pároco; e como Amaro jogava mal, Amélia, que era mestra, sentava-se por detrás dele para o "guiar". Logo às primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para Amélia, tão perto que confundiam os seus hálitos.

      — Esta? perguntava, indicando a carta com olho lânguido.

      — Não! não! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.

      O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colônia que ela usava com exagero.

      Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode, contemplava-a com paixão; Amélia, para se desembaraçar daqueles dois olhos langorosos fitos nela, tinha-lhe dito, por fim "que até era indecente, diante do pároco que era de cerimônia, estar assim a cocá-la toda a noite".

      Às vezes mesmo dizia-lhe, rindo:

      — Ó Sr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, se não temo-la aqui temo-la a dormir.

      E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joaneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia sonolentamente a sua meia.

      Depois do chá Amélia sentava-se ao piano. Causava então entusiasmo em Leiria uma velha canção mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de apetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos, apenas Amélia começava com muita languidez tropical:

      Quando sali de la Habana,

      Valga-me Dios ! ...

      Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amélia, com os dedos frouxos no teclado, o busto deitado para trás, rolando os olhos ternos, em movimentos doces de cabeça, dizia, toda voluptuosa, silabando o espanhol:

       Si à tua ventana llegaUna paloma,Trata-la com cariñoQue es mi persona. E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:Ay chiquita que si,Ay chiquita que no-o-o-o!

      Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se, cantarolando as últimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos úmidos de felicidade.

      Às sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assunção aparecia sempre com o seu belo vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga, davam-lhe com deferência o melhor lugar ao pé da mesa - que ela ia ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda. Antes do chá, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma garrafa de jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tísico, cantava o fado novo que compusera, chamado o Fado da Confissão; eram quadras feitas para regalar aquela piedosa reunião de saias e de batinas:

      Na capelinha do amor,

      No fundo da sacristia,

      Ao senhor padre Cupido

      Confessei-me noutro dia...

      Vinha

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