Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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De tarde um abraço só...
E pra acalmar doces chamas
Jejuar a pão-de-ló.
Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:
— Quem é o hábil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do senhor governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.
Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo - que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor - uns certos olhares dela, o arfar desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flor, até que ficava como embriagado de orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do sentimento! À sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ela; e com as pálpebras cerradas murmurava:
— Tão boa, coitadinha, tão boa!
Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciências. Quando tinha estado, durante três horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exalava de todos os seus movimentos, - ficava tão carregado de desejos que necessitava conter-se "para não fazer um disparate ali mesmo na sala, ao pé da mãe". Mas depois, em casa, só torcia os braços de desespero: queria-a ali de repente, oferecendo-se ao seu desejo; fazia então combinações - escrever-lhe-ia, arranjariam uma casinha discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam incompletos e perigosos, ao recordar o olho finório da irmã do cônego, as Gansosos tão mexeriqueiras! E diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma cidadela, voltavam as antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem pecado, comodamente! Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros! Ele não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz - serás casto - a um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina - accedo - dita a tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E quem inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas tentações? Que viessem ali duas, três horas para o pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, por que impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas vielas obscenas! - Porque a carne é fraca!
A carne! Punha-se então a pensar nos três inimigos da alma - MUNDO, DIABO e CARNE. E apareciam à sua imaginação em três figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra de olho de brasa e pé de cabra; e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) - de que lhe parecia uma personificação suficiente o Sr, conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito à sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a única consolação da sua existência; e do mundo, do senhor conde, só recebera proteção, benevolência, tocantes apertos de mão... E como poderia ele evitar as influências da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos de outrora, para os areais do deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminário que ele pertencia a uma Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção dum serviço santo. - Não compreendia, não compreendia!
Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bíblia está cheia de núpcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabeça coberta de faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de sândalo onde vão os tesouros do dote rangem, amarradas com cordas de púrpura, sobre o dorso dos camelos! Os mártires no circo casam-se num beijo, sob o bafo dos leões, às aclamações da plebe! Jesus mesmo não vivera sempre na sua santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalém, nos mercados do bairro de Davi; mas lá tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betânia, sob os sicômoros do Jardim de Lázaro; ali, enquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram à parte, ele olha defronte os tetos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os arvoredos de Getsêmani - e pousa a mão sobre os cabelos louros de Marta, que ama e fia a seus pés!
O seu amor era pois uma infração canônica, não um pecado da alma: podia desagradar ao senhor chantre, não a Deus; seria legitimo num sacerdócio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossível que transportar a velha Sé para cima do monte do Castelo.
Encolhia então os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentação interior. "Filosofia e palhada!" Estava doido pela rapariga, - era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!
Eram às vezes três horas da manhã, e ainda passeava no quarto, falando só.
Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto na janela do pároco uma luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomara o hábito triste de andar até tarde pelas ruas.
O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amélia pelo pároco. Mas conhecendo a sua educação e os hábitos devotos da casa, atribuía aquelas atenções quase humildes com Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilégios de confessor.
Instintivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de padres! Achava-os um "perigo para a civilização e para a liberdade"; supunha-os intrigantes, com hábitos de luxúria, e conspirando sempre para restabelecer "as trevas da Meia-Idade"; odiava a confissão que julgava uma arma terrível contra a paz do lar; e tinha uma religião vaga - hostil ao culto, às rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo Jesus poético, revolucionário, amigo dos pobres, e "pelo sublime espirito de Deus que enche todo o Universo"! Só desde que amava Amélia é que ouvia missa, para agradar à S. Joaneira.
E desejaria