Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros страница 39
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.
"... Espécie de caceteiro", continuava o cônego, que lia aquelas frases cruéis com uma tranquilidade doce, "desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar à ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinéia a própria e legítima esposa do seu regedor..."
O padre Brito não se dominou:
— Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recaindo pesadamente na cadeira.
— Escute, homem, disse Natário.
— Qual escute! O que é, é que o racho!
Mas se ele não sabia quem era o liberal!
— Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas à coxa.
Lembraram-lhe o dever cristão de perdoar as injúrias! A S. Joaneira com unção citou a bofetada que Jesus Cristo suportou. Devia imitar Cristo.
— Qual Cristo, qual cabaça! gritou Brito apoplético.
Aquela impiedade criou um terror.
— Credo! Sr, padre Brito, credo! exclamou a irmã do cônego, recuando a cadeira.
O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
— Nossa Senhora das Dores, que até pode cair um raio!
E, vendo mesmo Amélia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
— Brito, realmente você excedeu-se.
— Pois se estão a puxar por mim!...
— Homem, ninguém puxou por você, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo: - Apenas lhe lembrarei, como devo, que em tais casos, quando se diz a blasfêmia má, o reverendo padre Scomelli recomenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e água.
O padre Brito resmungava.
— Bem, bem, resumiu Natário. O Brito cometeu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericórdia de Deus é infinita!
Houve uma pausa comovida, em que se ouviu a Sra. D. Maria da Assunção murmurar "que ficara sem pinga de sangue": e o cônego, que durante a catástrofe pousara os óculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
"...Conheceis um outro com cara de furão?..."
Olhares de lado fixaram o padre Natário.
"...Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga; as suas intrigas trazem o cabido numa confusão porque é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro."
— Homem, essa! exclamou Amaro.
— É para que você veja, disse Natário erguendo-se lívido. Que lhe parece? Você sabe que eu, quando falo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois, senhores, até vem com isto! - E com um sorriso macilento, de fel: - Mas amanhã hei-de saber quem é! Olaré! Eu hei-de saber quem é!
— Deite ao desprezo, Sr. padre Natário, deite ao desprezo, disse a S. Joaneira pacificadora.
— Obrigado, minha senhora, acudiu Natário curvando-se com uma ironia rancorosa, obrigado! Cá recebi!
Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:
"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."
— Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
— Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
— Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
— ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!
— Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
— Então! então! disseram em roda, acalmando-a.
— Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!
— Seu malcriado!
Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
— Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!
Amélia mandava buscar água de flor de laranja.
— Deixe-a lá, rosnou o cônego, deixe-a lá! Aquilo passa-lhe. São calores!
Amélia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a Sra. D. Maria da Assunção e a Gansoso surda, que iam também "sossegar a D. Josefa, coitadita!" Os padres agora estavam sós e o cônego voltando-se para Amaro: - Ouça você, que é a sua vez - disse retomando o jornal.
— E verá que dose! disse Natário.
O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:
"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
— Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.
"... Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a desviares do caminho da honra; condenas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe preparando um horroroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos da tua criminosa lascívia..."
— Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
"...Mas acautela-te,