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A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, num velho painel muito escuro - que ultimamente o cônego dera à S. Joaneira - destacava uma face lívida de monge e um osso frontal de caveira.
O cônego Dias acomodara-se ao canto do canapé, sorvendo refletidamente a pitada: e Natário, que se agitava pela sala, exclamou logo:
— Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quis subir porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao colega Dias... Tive lá em casa o padre Saldanha. Temo-las boas!
O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:
— Coisa que nos toca?
Natário começou com solenidade erguendo alto o braço:
— Primo: o colega Brito mudado da freguesia de Amor para ao pé de Alcobaça, para a serra, para o inferno...
— Que me diz? exclamou a S. Joaneira.
— Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o Comunicado do Distrito, mas por fim saiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...
— Sempre é o que se dizia da mulher do regedor, murmurou a boa senhora.
— Olá! interrompeu severamente o cônego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!... Siga com o seu recado, colega Natário.
— Secundo, continuou Natàrio: é o que eu ia dizer ao colega Dias... O senhor chantre, em vista do Comunicado e de outros ataques da imprensa, está decidido a "reformar os costumes do clero diocesano", palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam sumamente os conciliábulos de eclesiásticos e de senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Enfim, palavras textuais de sua excelência - está decidido a limpar as cavalariças de Augias!... - o que quer dizer em bom português, minha senhora, que vai andar tudo numa roda-viva.
Houve uma pausa consternada. E Natário, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:
— Que lhes parece esta à última hora, hem?
O cônego ergueu-se pachorrentamente:
— Olhe, colega, disse, entre mortos e feridos há-de escapar alguém. E a senhora não se fique ai com essa cara de Mater dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.
— Eu lá disse ao padre Saldanha... - começou Natário perorando.
Mas o cônego interrompeu-o com força:
— O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós às torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.
O chá foi silencioso. O cônego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado, franzia muito o sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assunção que estava mal do catarro, ficou toda murcha, com a testa sobre o punho. Natário, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão.
— E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de Amélia e do escrevente, que tomavam o chá sobre o piano,
— Um dia cedo, respondeu ela sorrindo.
Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolão:
— São horas de me ir chegando à Rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
Mas a S. Joaneira não consentiu. Credo, estavam todos monos como se estivessem de pêsames!... Que fizessem um quino para espairecer... - O cônego porém, saindo do seu torpor, disse com severidade:
— Está a senhora muito enganada, ninguém está mono. Não há razões senão para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?
João Eduardo mexeu-se, sorriu:
— Eu cá por mim, senhor cônego, não tenho razão senão para estar feliz.
— Pois está claro, disse o cônego. E agora Deus lhes dê boas-noites a todos, que eu vou quinar para vale de lençóis. E o Amaro também.
Amaro foi apertar silenciosamente a mão de Amélia, - e os três padres desceram calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um morrão. O cônego entrou a buscar o seu guarda-chuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
— Eu, colegas, não quis assustar há pouco a pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses falatórios... É o diabo!
— É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natário, abafando a voz.
— É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
Estavam de pé no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amélia cantarolava a Chiquita.
Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados, fazia rir as senhoras, - e Amélia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...
— Eu, disse o cônego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é necessário manter a honra da classe!
— E não carece dúvida, acrescentou Natário, que se há outro artigo e mais falatórios, estala com certeza o raio...
— Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
— Grande galhofa lá em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natário duma chuva miudinha.
— Olha que noite! exclamou furioso.
Só o cônego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
— Pois meninos, não há que ver, estamos em calças pardas...
Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O cônego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado Natário, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça caída, num abatimento de derrota; e enquanto os três padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cônego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por trás a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
XI
Daí a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natário e o doutor Godinho conversando em harmonia, à porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor, - que era escutado com deferência em questões de política estrangeira,