Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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de enterro que enternecia, fazia soluçar as duas senhoras. Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos óleos; murmurando as expressões penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as mãos - que há dez anos só se moviam para chegar a escarradeira, e as plantas dos pés que há dez anos só se aplicavam a buscar o calor da botija. E depois de queimar as bolinhas de algodão úmidas de óleo, ajoelhou-se, ficou imóvel, com os olhos postos no Breviário.

      João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do piano: agora decerto, durante quatro ou cinco semanas, Amélia não tornaria a tocar... E uma melancolia amoleceu-o, vendo no doce progresso do seu amor aquela brusca interrupção da morte e dos seus cerimoniais.

      A Sra. D. Maria entrou então, toda transtornada daquela cena - e seguida de Amélia que trazia os olhos muito vermelhos.

      — Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que quero que me faça um favor, que é acompanhar-me a casa... Estou toda a tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus seja dito, não posso ver gente na agonia... Que ela, coitadinha, vai-se como um passarinho... E pecados não os tem... Olhe, vamos pela Praça que é mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso ficar... É que me dava a dor... Ai! que desgosto... Que para ela até é melhor... Pois olhem, sinto- me a desfalecer...

      Foi mesmo necessário que Amélia a levasse a baixo, ao quarto da S. Joaneira, a reconfortá-la caridosamente com um cálice de jeropiga.

      — Ameliazinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessário para alguma coisa...

      — Não, obrigada. Ela está por instantes, coitadinha...

      — Não te esqueças, filha, recomendou descendo a Sra. D. Maria da Assunção, põe-lhe as duas velas bentas à cabeceira... Alivia muito na agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas, em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!

      À porta, mal viu o pálio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço de João Eduardo, colou-se toda a ele com terror - um pouco também com o acesso de ternura que lhe dava sempre a jeropiga.

      Amaro prometera voltar mais tarde, para "as acompanhar, como amigo, naquele transe". E o cônego (que chegara, quando a procissão como o pálio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado desta delicadeza do senhor pároco, declarou logo que visto que o colega Amaro vinha fazer a noitada, ele ia descansar o corpo porque, Deus bem o sabia, aquelas comoções arrasavam-lhe a saúde.

      — E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma, e me visse nos mesmos assados...

      — Credo, senhor cônego! exclamou a S. Joaneira, nem diga isso!...

      — E começou a choramingar, muito abalada.

      — Pois então boas noites, disse o cônego, e nada de afligir. Olhe, a pobre criatura, alegria não a tinha: e como não tem pecados não lhe importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado, senhora, é uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...

      Também a S. Joaneira não se sentia bem. O choque, logo depois do jantar, dera-lhe ameaças de enxaqueca: - e quando Amaro voltou, às onze, Amélia que fora abrir a porta, disse-lhe, ao subir à sala de jantar:

      — O senhor pároco desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava que nem via... Deitou-se, pôs água sedativa e adormeceu...

      — Ah! deixá-la dormir!

      Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede; dos seus beiços abertos saía um gemido muito débil e contínuo. Sobre a mesa agora, uma grossa vela benta, de morrão negro, erguia uma luz triste; e ao canto, transida de medo, a Ruça, segundo as recomendações da S. Joaneira, ia rezando a coroa.

      — O senhor doutor, disse Amélia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que há-de gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...

      — Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.

      Voltaram à sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fora ventava forte. Havia muitas semanas que não se encontravam assim sós. Muito embaraçado, Amaro aproximou-se da janela: Amélia encostou-se ao aparador.

      — Vamos ter uma noite de água, disse o pároco.

      — E está frio, disse ela, encolhendo-se no xale. Eu tenho estado passada de medo...

      — Nunca viu morrer ninguém?

      — Nunca.

      Calaram-se - ele imóvel ao pé da janela, ela encostada ao aparador, de olhos baixos.

      — Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe ia dando a presença dela àquela hora da noite.

      — Na cozinha está a braseira acesa, disse Amélia. É melhor irmos para lá.

      — É melhor.

      Foram. Amélia levou o candeeiro de latão: e Amaro, indo remexer com as tenazes o brasido vermelho, disse:

      — Há que tempo que eu não entro aqui na cozinha... Ainda tem os vasos com os raminhos fora da janela?

      — Ainda, è um craveiro...

      Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da braseira. Amélia, inclinada para o lume, sentia os olhos do padre Amaro devorá-la silenciosamente. Ele ia falar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer; não ousava mover- se, erguer as pálpebras, com medo que lhe rompessem as lágrimas; mas ansiava pelas suas palavras, ou amargas ou doces...

      Elas vieram enfim, muito graves.

      — Menina Amélia, disse, eu não esperava poder assim falar-lhe a sós. Mas as coisas arranjaram-se... É decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as suas maneiras mudaram tanto...

      Ela voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho trêmulo:

      — Mas bem sabe por quê! exclamou quase chorando.

      — Sei. Se não fosse aquele infame Comunicado, e as calúnias... nada se tinha passado, e a nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É justamente a esse respeito que eu lhe quero falar.

      Chegou a cadeira mais para junto dela, e muito suave, muito tranquilo:

      — Lembra-se desse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em que eu era arrastado pela rua da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era ofendida?... Lembra-se, hem? Sabe quem o escreveu?

      — Quem? perguntou Amélia toda surpreendida.

      — O Sr. João Eduardo! disse o pároco muito tranquilamente cruzando os braços diante dela.

      — Não pode ser!

      Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz continuou paciente e suave:

      — Ouça. Sente-se. Foi ele que o escreveu. Soube ontem tudo. O Natário viu o original escrito pela letra dele. Foi ele que descobriu. Por meios dignos decerto,.. e porque era a vontade de Deus que a verdade aparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem. - Então, baixo, contou-lhe o que

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