Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros страница 48
Natário dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos ombros, arrastando as palavras:
— Ah, colega, lá isso... Os comos e os porquês... Você compreende... Sigillus magnus!
E com uma voz aguda de triunfo, a largos passos pela sacristia:
— Mas ainda isto não é nada! o Sr. Eduardo, que nós víamos ali na casa da S. Joaneira, tão bom mocinho, é um patife antigo. É o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do Distrito! Está metido na redação até altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser ateu... Há seis anos que se não confessa... Chama-nos a canalha canônica... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!
Amaro, escutando Natário, arrumava atarantadamente, com as mãos trêmulas, papéis no gavetão da escrivaninha.
— E agora?... perguntou.
— Agora? exclamou Natário. Agora é esmagá-lo!
Amaro fechou o gavetão, e, muito nervoso, passando o lenço pelos lábios secos:
— Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um homem desses... Um perdido!
Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silêncio, o velho relógio da sacristia punha o seu tiquetaque plangente. Natário tirou da algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
— Desmanchar-lhe o casamentozinho, hem?
— Você acha? perguntou sofregamente Amaro.
— Caro colega, é uma questão de consciência... Para mim era uma questão de dever! Não se pode deixar casar a pobre pequena com um brejeiro, um pedreiro-livre, um ateu...
— Com efeito! com efeito! murmurava Amaro.
— Vem a calhar, hem? fez Natário; e sorveu com gozo a pitada. Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar a igreja; vinha perguntar a suas senhorias se demoravam.
— Um instante, Sr. Domingos.
E, enquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do pátio, os dois padres muito chegados falavam baixo.
— Você vai ter com a S. Joaneira, dizia Natário. Não, escute, é melhor que lhe fale o Dias; o Dias é que deve falar á S. Joaneira. Vamos pelo seguro. Você fale à pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha fora de casa! - E ao ouvido de Amaro: - Diga à rapariga que ele vive ai de casa e pucarinho com uma desavergonhada!
— Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!
— Há-de ser. Ele é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a pequena.
E foram descendo a igreja atrás do sacristão, que fazia tilintar o seu molho de chaves, pigarreando grosso.
Nas capelas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso morrão, estava a essa, com o largo pano de veludilho cobrindo o caixão do Morais, recaindo em pregas franjadas; à cabeceira tinha uma larga coroa de perpétuas; e aos pés pendia, dum grande laço de fita escarlate, o seu hábito de cavaleiro de Cristo.
O padre Natário então parou; e tomando o braço de Amaro, com satisfação:
— E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...
— O quê?
— Cortar-lhe os víveres!
— Cortar-lhe os víveres?
— O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hem? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas idéias, vai pô-lo fora do cartório... E que escreva então Comunicados!
Amaro teve horror àquela intriga rancorosa:
— Deus me perdoe, Natário, mas isso é perder o rapaz.
— Enquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o largo!
— Oh, Natário! oh, colega! isso é de pouca caridade... Isso não é de cristão... E então aqui que Deus está a ouvi-lo...
— Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-Nossos. Para ímpios não há caridade! A Inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacá-los pela fome. Tudo é permitido a quem serve uma causa santa... Que se não metesse comigo!
Iam a sair; mas Natário deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
— Quem está ali?
— O Morais, disse Amaro.
— O gordo, picado das bexigas?
— Sim.
— Boa besta!
E depois de um silêncio:
— Foram os Ofícios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado cá na minha campanha... E a viúva fica rica. É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silvério, hem? Tem as melhores pechinchas de Leiria, aquele elefante!
Saíram. A botica do Carlos estava fechada, o céu muito escuro.
No largo, Natário parou:
— Resumindo: o Dias fala à S. Joaneira, e você fala à pequena. Eu por mim me entenderei com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vocês do casamento, que eu me encarrego do emprego! - E batendo no ombro do pároco jovialmente: - É o que se pode dizer atacá-lo pelo coração e pelo estômago! E adeusinho, que as pequenas estão à espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um defluxo!... É fraquita, aquela rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu em a vendo murcha até perco logo o sono. Que quer você? Quando se tem bom coração... Até amanhã, Amaro.
— Até amanhã, Natário.
E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé.
Amaro entrou em casa ainda um pouco trêmulo, mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa, para se compenetrar bem dessa responsabilidade estimada:
— É do meu dever! É do meu dever!
Como cristão, como pároco, como amigo da S. Joaneira, o seu dever era procurar Amélia, e, com simplicidade, sem paixão interessada, contar- lhe que fora João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o Comunicado.
Foi ele! Difamou os íntimos da casa, sacerdotes de ciência e de posição; desacreditou-a a ela; passa as noites em deboche na pocilga do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; há seis anos que se não confessa! Como diz o colega Natário, é uma fera! Pobre menina! Não, não podia casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor