Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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— Você está ali como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...
— Vamos a saber, padre-mestre: preço? disse o pároco.
— Seis tostões. Que diabo! é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
— Uma rica saleta, comentou o coadjutor respeitosamente.
— E é longe da Sé? perguntou Amaro.
— Dois passos. Pode-se ir dizer missa de chinelos. Na casa há uma rapariga, continuou com a sua voz pausada o cônego Dias. E a filha da S. Joaneira. Rapariga de vinte e dois anos. Bonita. Sua pontinha de gênio, mas bom fundo... Aqui tem você a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericórdia, com um lampião lúgubre ao fundo.
— E aqui tem você o seu palácio! disse o cônego, batendo na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliência, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janelas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candeeiro de petróleo; e a figura da S. Joaneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, de aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um colo copioso e roupas asseadas.
— Aqui tem a senhora o seu hóspede, disse o cônego subindo.
— Muita honra em receber o senhor pároco! muita honra! Há-de vir muito cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canapé de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.
— É a sua sala, senhor pároco, disse a S. Joaneira. Para receber, para espairecer... Aqui — acrescentou abrindo uma porta — é o seu quarto de dormir. Tem a sua cômoda, o seu guarda-roupa... — Abriu os gavetões, gabou a cama batendo a elasticidade dos colchões. — Uma campainha para chamar sempre que queira... As chavinhas da cômoda estão aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...
— Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, — disse o pároco com a sua voz baixa e suave.
— É pedir! O que há, da melhor vontade...
— Oh criatura de Deus! interrompeu o cônego jovialmente, o que ele quer agora é cear!
— Também tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que está o caldo a apurar...
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
— Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!...
O cônego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
— É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
— Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o pároco, caçando os seus chinelos de ourelo. Olha o seminário!... E em Feirão! Caía— me a chuva na cama.
Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cometas.
— Que é aquilo? perguntou Amaro, indo à janela.
— As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite estava muito negra. E havia sobre a cidade um silêncio côncavo, de abóbada.
Depois das cometas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janela um soldado, que se demorara nalguma viela do Castelo, passou correndo; e das paredes da Misericórdia saía constantemente o agudo piar das corujas.
— É triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joaneira gritou de cima:
— Pode subir, senhor cônego! Está o caldo na mesa!
— Ora vá, vá, que você deve estar a cair de fome, Amaro! — disse o cônego, erguendo-se muito pesado.
E detendo um momento o pároco, pela manga do casaco:
— Vai você ver o que é um caldo de galinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo à luz forte dum candeeiro de abajur verde. Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo e, na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz úmido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta de prato morgado. No armário envidraçado, um pouco na sombra, viam-se cores claras de porcelana; a um canto, ao pé da janela, estava o piano, coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha dum tabuleiro de roupa lavada, o pároco esfregou as mãos, regalado.
— Para aqui, senhor pároco, para aqui, disse a S. Joaneira. Dai pode vir-lhe frio. — Foi fechar as portadas das janelas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros. — E o senhor cônego toma um copinho de geléia, sim?
— Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o cônego, sentando— se e desdobrando o guardanapo.
A S. Joaneira, no entanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o pároco, que, com a cabeça sobre o prato, comia em silêncio o seu caldo, soprando a colher. Parecia bem-feito; tinha um cabelo muito preto, levemente anelado. O rosto era oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas.
O cônego, que não o via desde o seminário, achava-o mais forte, mais viril.
— Você era enfezadito...
— Foi o ar da serra, dizia o pároco, fez-me bem! — Contou então a sua triste existência em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do Inverno, só com pastores. O cônego deitava-lhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.
— Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! Desta gota não pilhava você no seminário.
Falaram do seminário.
— Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o cônego.
— E do Carocho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscências, recordavam as histórias de então, o catarro do reitor, e o mestre do cantochão que deixara um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage.
— Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
A S. Joaneira então pôs na mesa um prato covo com maçãs assadas.
— Viva! Não, lá nisso também eu entro!