Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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— Isto é um santo, senhor pároco, isto é um santo! Ai! devo -lhe muitos favores!
— Deixe falar, deixe falar, dizia o cônego. — Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso. — Boa gota! acrescentou, saboreando o seu cálice de Porto. Boa gota!
— Olhe que ainda é dos anos da Amélia, senhor cônego.
— E onde está ela, a pequena?
— Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquilo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite.
— Cá esta senhora é proprietária, explicou o cônego, falando do Morenal. É um condado! — Ria com bonomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulência da S. Joaneira.
— Ah, senhor pároco, deixe falar, é uma nesga de terra... disse ela.
Mas vendo a criada encostada à parede, sacudida com aflições de tosse:
— Ó mulher, vai tossir lá para dentro! credo !
A moça saiu, pondo o avental sobre a boca.
— Parece doente, coitada, observou o pároco.
Muito achacada, muito!... A pobre de Cristo era sua afilhada, órfã, e estava quase tísica. Tinha-a tomado por piedade...
— E também porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Meteu-se aí com um soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos — e trincando migalhas, perguntou se havia muitas doenças naquele Verão.
— Colerinas, das frutas verdes, rosnou o cônego. Metem-se pelas melancias, depois tarraçadas de água... E suas febritas...
Falaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
— Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, tenho saúde, tenho!
— Ai, Nosso Senhor lha conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joaneira. — Contou imediatamente a grande desgraça que tinha em casa, uma irmã meio idiota entrevada havia dez anos! Ia fazer sessenta anos... No Inverno viera-lhe um catarro, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...
— Há bocado, ao fim da tarde, teve ela um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou mais...
Continuou a falar "daquela tristeza", depois da sua Ameliazinha, das Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo — sentada, com o gato no colo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O cônego, pesado, cerrava as pálpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo; a luz do candeeiro esmorecia.
— Pois senhores, disse por fim o cônego mexendo-se, isto são horas!
O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graças.
— O senhor pároco quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joaneira.
— Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
E desceu devagar, palitando os dentes.
A S. Joaneira alumiava no patamar, com o candeeiro. Mas nos primeiros degraus o pároco parou, e voltando-se, afetuosamente:
— É verdade, minha senhora, amanhã é sexta-feira, é jejum...
— Não, não, acudiu o cônego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, você amanhã janta comigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre, á Sé, e por aí... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui nunca há peixe.
A S. Joaneira tranqüilizou logo o pároco.
— Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor pároco. Tenho o maior escrúpulo!
— Eu dizia, explicou o pároco, porque infelizmente hoje em dia ninguém cumpre.
— Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ela. — Mas eu! credo !... A salvação da minha alma antes de tudo!
A campainha embaixo, então, retiniu fortemente.
— Há-de ser a pequena, disse a S. Joaneira. Abre, Ruça !
A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
— És tu, Amélia?
Uma voz disse adeusinho ! adeusinho ! E apareceu, subindo quase a correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.
— Sobe, filha. Aqui está o senhor pároco. Chegou agora à noitinha, sobe!
Amélia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o pároco ficara, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha corada; os seus olhos vivos e negros luziam; e saía dela uma sensação de frescura e de prados atravessados.
O pároco desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas-noites ! com a cabeça baixa. O cônego, que descia atrás, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amélia:
— Então isto são horas, sua brejeira?
Ela teve um risinho, encolheu-se.
— Ora vá-se encomendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e cabeluda.
Ela subiu a correr, enquanto o cônego, depois de ir buscar o guarda— sol à saleta, saía, dizendo à criada, que erguia o candeeiro sobre a escada:
— Está bem, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então às oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza à Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.
O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o teto, através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.
III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu pai era criado do marquês; a mãe era criada de quarto; quase uma amiga da senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira página branca: À minha muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, — Marquesa de Alegros. Possuía também um dagtterreótipo de sua mãe: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que fora