Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros
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Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silêncio da alta livraria, eram respeitados, usavam óculos, tomavam rapé. Ele mesmo tinha às vezes ambições repentinas de ciência; mas diante dos vastos infolios vinha-lhe um tédio insuperável. Era no entanto devoto: rezava, tinha fé ilimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminário! A capela, os chorões do pátio, as comidas monótonas do longo refeitório lajeado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz dum quintal, fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores éticos: e mesmo no último ano, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
Ordenou-se enfim pelas têmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminário, esta carta do Sr. padre Liset:
{{d|"Meu querido filho e novo colega.— Agora que está ordenado, entendo em minha consciência que devo dar-lhe conta do estado dos seus negócios, pois quero cumprir até o fim o encargo com que carregou os meus ombros débeis a nossa chorada marquesa, atribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco devam importar a uma alma votada ao sacerdócio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marquesa — para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna — está inteiramente exausto. Aproveito esta ocasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabeleci mento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: caiu sob o império das paixões, e tendo-se ligado ilegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hóspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco nestas impurezas, tão impróprias de que um tenro levita, como o meu querido filho, tenha delas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitável família. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circunstâncias, que o meu querido filho esteja de posse deste fato. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguesia de Feirão, na Gralheira, vou falar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de atender um pobre padre que só pede a Deus misericórdia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade neste nosso santo ministério quando sabemos compreender quantos são os bálsamos que derrama no peito e quantos os refrigérios que dá — o serviço de Deus.' Adeus, meu querido filho e novo colega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupilo da nossa chorada marquesa, que decerto do Céu, onde a elevaram as suas virtudes, suplica à Virgem, que ela tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupilo ". Liset.
"P.S. — O apelido do marido de sua irmã é Trigoso. " Liset.}}
Dois meses depois Amaro foi nomeado pároco de Feirão, na Gralheira, serra da Beira Alta. Esteve ali desde Outubro até o fim das neves.
Feirão é uma paróquia pobre de pastores e naquela época quase desabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram nos distritos de Santarém e de Leiria paróquias populosas, com boas côngruas. Amaro escreveu logo à irmã contando a sua pobreza em Feirão; ela mandou— lhe, com recomendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu imediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham— lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, simpático, com uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi à Rua dos Calafates no 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos numa cuia enorme, toda coberta de pó-de-arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.
— Como estás bonito! Ora não há! Quem te viu? Ih, Jesus! Que mudança!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos gêneros, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.
— Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!... Ai! ter— te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãozinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com Joãozinho na cabeça...
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luís. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marquesa de Alegros, a Sra. D. Luísa, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro de Estado, com influência, regenerador fiel desde cinqüenta e um, duas vezes ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. Á porta um coupé esperava.
— A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado à ombreira do pátio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pátio lajeado, uma senhora saía, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a testa, lunetas de ouro num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.
— A senhora condessa já me não conhece? disse Amaro com o chapéu na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
— O Amaro? — disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele é! Ora não há! Está um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
— Eu podia lá esperar! continuou ela admirada. E está agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da paróquia...
— De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mãos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e Amaro sentia vir dela um perfume de pó-de-arroz e uma frescura de cambraias.
— Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de falar. Eu me encarrego disso. Olhe, venha por cá. — E com o dedo sobre o canto da boca: — Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo, não. O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã, sou certa. — E rindo com os seus largos dentes frescos: — Parece que o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o tempo passa!
— Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
— Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.
Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes de ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monótona sussurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.