Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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órias

      PREFACIO

Janeiro de 1918.

      Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda n'este sonho poído. Não me habituo: não posso vêr uma arvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplendido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectaculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante seculos e seculos, até ao juizo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas… Fugi sempre dos phantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existencia foram outros: foram, por exemplo, D. João da Camara, poeta e santo, Correia d'Oliveira, um chapeu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornaes?.. Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dôr tambem.

      A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada… De tudo o que se passou comigo só conservo a memoria intacta de dois ou tres rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e enebriam-me, como um pouco d'agua fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nitidas como na primeira hora: ouço hoje como hontem os passos de meu pae quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hydranjas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvae-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de mim… Algumas sensações, ternura, côr, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frivolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo d'oiro, a outra banda verde… Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos historicos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrario este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquella laranjeira que, de velha e tonta, deu flôr no inverno em que seccou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

      Lá está a velha casa abandonada, e as arvores que minha mãe, por sua mão, dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente, o mesmo barco archaico sobe o rio, guiado á espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a vêr, e não ha lagrimas no mundo que os façam resuscitar.

      Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou colerico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó; no armario, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e da fortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: – Ó sê Manuel cá p'ra baixo p'r'o mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos! – e foi hontem… A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve. – Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!.. As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as rêdes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalteravel o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bemdito, tanta foi a pesca. – Quantas duzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fóra, anunciando o inverno que vem proximo. O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado – com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.

      O que sei de bello, de grande ou de util, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dôr e do assombro, tudo me vem desse tempo… Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balburdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram misterio que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fertil em emoção e aventura, que a armadilha aos passaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pégadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacavel de agosto. Os passaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sêde aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!.. Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!.. Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura tôrva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada… Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmurio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte. Quasi todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver… – são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim… Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Boia espuma na agua viva que a maré traz da barra… E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.

Agosto de 1910.

      Aos 23 do mez passado morreu meu pae amachucado, exhausto e pobre. Encontrão de um, repelão de outro, assim foi até á cova. Tinha 67 annos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Ha muitos annos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas sem fim sobre um velho romance de Camillo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha

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